Local de fala e interseccionalidade: quando é que eu posso falar?

Por Rafael Ferreira*

Com a atuação de diversos movimentos sociais na internet e a ampliação do debate sobre formas de opressão, a discussão sobre local de fala nunca esteve tão presente. O conceito que visa democratizar discursos acaba sofrendo uma visão distorcida, em que não devemos falar sobre assuntos que não dizem respeito à nossa vivência. Neste sentido, acaba afastando, por exemplo, pessoas cisheterossexuais de debates sobre a LGBTfobia.  

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Para entender local de fala, é preciso falar sobre interseccionalidades. Nós somos pessoas cruzadas por diversas identidades. Dentro dos movimentos L, G, B, T, Q, I, A, temos uma série de diferenças determinadas não somente pelas orientações sexuais ou identidades de gênero, mas também por questões de raça, etnia, idade, classe social, comportamento, aparência etc.  

Um homem gay negro de classe social baixa terá experiências voltadas à orientação sexual muito distintas de um homem gay branco de classe social alta. E quando apontamos em um discurso apenas uma identidade, estamos uniformizando um grupo e dando voz à apenas uma vivência.  

O local de fala surge para que grupos historicamente calados possam ter o direito de compartilhar uma vivência pela qual outros grupos não têm acesso e propriedade para falar sobre. A filósofa e escritora Djamila Ribeiro aponta que todas as pessoas têm um local de fala, pois todas falam a partir de um local social – baseado nas relações de poder dentro do sistema em que vivemos.  

Um homem gay negro de classe social baixa terá experiências voltadas à orientação sexual muito distintas de um homem gay branco de classe social alta.

Nesta estrutura de poder, onde existem grupos vulneráveis e outros privilegiados, a socióloga Patricia Hill Collins explica que o local de fala não se trata de afirmar experiências individuais, mas sim num sentido coletivo – entender o porquê um grupo tem mais acesso a oportunidades do que outros.  

Como falar a partir do seu local de fala sobre outras questões? 

Como foi apontado no início do texto, a visão deturpada do conceito de local de fala acaba afastando pessoas de debates importantes, como o homem em questões voltadas à igualdade de gênero, por exemplo.  

A verdade é que o homem é quem mais precisa discutir sobre o machismo, assim como a pessoa branca é quem mais precisa discutir sobre o racismo. Afinal são estas pessoas que se privilegiam em cima das questões raciais e de gênero.  

A verdade é que o homem é quem mais precisa discutir sobre o machismo, assim como a pessoa branca é quem mais precisa discutir sobre o racismo.

Neste sentido, precisamos debater as questões com consciência do espaço de poder que ocupamos na sociedade. Em um debate sobre travestis pretas na prostituição, por exemplo, um homem cisgênero branco pode participar – desde que não atravesse a vivência da qual não faz parte e reconheça os privilégios que sua cisgeneridade e sua branquitude carregam em cima de travestis pretas.  

Nas redes sociais, com tantas pessoas dando opiniões sem propriedade sobre diversos assuntos, é preciso se atentar também ao local de escuta. A escritora Grada Kilomba aponta que “o não ouvir é a tendência a permanecer num lugar cômodo daquele que se intitula poder falar sobre os ‘outros’, enquanto estes ‘outros’ permanecem silenciados”. 

 *Rafael Ferreira é criador de conteúdo, técnico em Publicidade, estudante de Rádio e TV pela UNIVAP e co-criador do projeto “Senta e Escuta”. Atualmente produz e apresenta programas na TV Univap.