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TROCO LIKES, SIGO DE VOLTA

Por Harrison Nogueira*

“Amigo, tira uma foto minha, mas com seu telefone. Sua câmera é melhor, vou por um filtro alaranjado porque eu vi uma foto de uma blogueira com mais de mil curtidas usando esse filtro.”

“Adorei te conhecer, me passa seu Instagram pra gente virar amigo virtual… nossa, sua fatos tem muitas curtidas, você é mesmo sensacional.”

“Ela compra seguidores. Tem milhares lhe seguindo e suas fotos têm o mesmo número de curtidas que as minhas. Justo eu que não tenho nem quatro dígitos de amigos me seguindo – tem coisa errada nessa daí”

Diálogos nada ficcionais e que beiram o absurdo dão o tom, numa descida vertiginosa, de nossa realidade rumo aos porões do abismo que nos ronda.

Remando contra o influxo, o Instagram, rede social mais bombada do momento, anunciou que não mais exibe o número de curtidas por fotos publicadas sob a justificativa de que, agindo assim, seus usuários poderão se concentrar, de fato, no que mais interessa: o conteúdo de suas fotos. O Facebook pretende fazer o mesmo.

A verdade é que as infames curtidas foram subvertidas em moedas virtuais e, para além do valor comercial, diferentemente de outros câmbios, curtidas ou likes possuem, até então, natureza pública, o que pode conferir medidas equivocadas sobre status social, fama e influência de determinado indivíduo, e, portanto, são mais sedutoras e mais perigosas que as demais.

Diálogos nada ficcionais e que beiram o absurdo dão o tom, numa descida vertiginosa, de nossa realidade rumo aos porões do abismo que nos ronda.

Imagine-se andado por aí estampando em sua testa um número qualquer cujo valor determinaria quem você é, além de determinar seu papel na organização social vigente. Se você não curte essa ideia, eu sinto tanto pelo trocadilho quanto sobre informar que existem muitas pessoas que pensam exatamente assim.

Através desses cruéis mecanismos, nascem o bullying, a raiva, a fama a qualquer custo e a quantificação do engajamento que provocamos no mundo virtual, em detrimento ao que realmente somos no mundo real. A realidade torna-se opressora e nos pesa aos ombros.

Olhamos para as redes sociais como se estivéssemos passeando por um shopping. Lá, tudo é lindo, cheira bem e nos convida a desejar aquilo que não temos e, muitas vezes, nem precisamos: “Fulano está viajando para o exterior, que vidão!”, “cicrano troca de carro todo ano. Está rico!”, “beltrano, agora, é crossfiteiro e ganhou muitos seguidores porque pode exibir seu corpo sem pudores”.

Tolos que somos, enganamos e somos enganados, numa dicotomia viciosa e alienante. Mal sabemos que fulano está em casa publicando fotos antigas, tiradas por ele próprio, em outras épocas ou advindas de uma rápida e burra zapeada pelo Google.

Cicrano, atolado em dívidas, pensão dos filhos atrasada, resolveu trocar o carro, afinal, os filhos já não rendem tantas curtidas como um carro zero – postagens de bons pais tem mais valor quando os filhos são ainda nenéns, pois fofura monetiza curtidas. Afinal, quem, em sã consciência, dispensaria um like a um bebê?

Através desses cruéis mecanismos, nascem o bullying, a raiva, a fama a qualquer custo e a quantificação do engajamento que provocamos no mundo virtual, em detrimento ao que realmente somos no mundo real.

Beltrano, portanto, se matriculou no Crossfit e anda fazendo até enquete para nós, meros mortais, escolhermos a cor de sua camisa de malhar. Em busca de resultados rápidos, resolveu aplicar uns produtos porque o Verão está logo ali na esquina. O tempo urge, não é mesmo? A curto prazo, tudo certo, o importante é estar bem na foto. Somos tão jovens, dizia Renato Russo. Mas até quando?

Ficamos, em frente de nossas telas, acreditando nos enredos milimetricamente programados que nos contam. Aprendemos que devemos correr atrás da cenoura pendurada na vara bem à frente de nossos olhos. Passamos a vida inteira almejando o impossível, lutando contra moinhos de vento, esperando pelo nosso inevitável fim. A cenoura não existe. O rei está nu, tal qual o Crossfiteiro.

As curtidas, hoje, saem de cena. As blogueiras choram gotas espessas de rímel borrado enquanto eu me regozijo por não ter que passar mais as vergonhas de não ter nem cem curtidas em minhas publicações, afinal o que as pessoas devem pensar sobre mim?

Ficamos, em frente de nossas telas, acreditando nos enredos milimetricamente programados que nos contam.

Certamente existirão outras métricas para nos quantificar, para o bem ou para o mal. A realidade líquida de Baumam é também fugaz, efêmera e tóxica. Ela escorre por dentre nossas entranhas como um chorume que nos contamina e dilacera-nos de dentro para fora.

Nos manter sãos nesses novos tempos é tarefa quase tão hercúlea quanto a nova abordagem do Instagram. A empresa pode tentar garantir a melhora do conteúdo das fotos, mas e de nosso conteúdo, de nossos valores, quem deve se preocupar com eles, senão nós mesmos? #SDV @harry_walnut #trocolikes.

*Harrison Nogueira é oficial da Marinha e engenheiro, pai da Nina e do Pitágoras.

Redação

Redação Ezatamentchy

7 Comments
  1. Paula Andrade

    03/10/2019 08:54

    Gênio.
    Quero um livro seu!
    Arrepiante a veracidade desse texto,?37 mesma já me senti adoecida nessas redes sociais…. obrigada por tanta lucidez!

  2. Michelle

    03/10/2019 09:26

    👏🏼👏🏼👏🏼👏🏼👏🏼👏🏼👏🏼 Disse tudo! E infelizmente se você perguntar a uma criança, o que ela quer ser quando crescer. Não se surpreenda quando ela falar que quer ser um Youtuber, digital influencer. São poucos o que ainda dizem, médico, advogado, ou seja lá qual profissão “real” for! Muito triste!

  3. Raquel

    03/10/2019 09:28

    Show👏🏼👏🏼👏🏼

  4. Barbara

    03/10/2019 10:09

    Amei 👏👏👏👏👏👏

  5. Guilherme Ferreira

    03/10/2019 13:53

    Deve ser muito trabalhoso sorrir o tempo inteiro e tentar mostrar que a vida está imune aos problemas cotidianos.

  6. Gilberto Rangel

    03/10/2019 15:00

    Bom texto amigo. Observações do nosso tempo, mas que carregam valores sempre existentes no comportamento humano como, a vaidade, a luxúria, o egocentrismo, entre outros. Parabéns !

  7. Victor

    06/10/2019 15:21

    Esse texto escancara uma das piores modalidades do sofrimento humano: a solidão. Atualmente, tudo é tão rápido, que simplesmente não temos tempo. Tempo para nós e para os outros. A curtida se tornou uma companhia. E ela acaba parecendo a melhor das companhias, porque ela parece realmente se interessar por nós, mesmo que esse nós seja somente aquilo que queremos mostrar. O que realmente somos, muitos não querem nem saber.
    Seu texto é um texto muito bem escrito, estruturado, com um início e fechamento coesos.
    Mas eu penso que todos nós preferiremos continuar com as curtidas, ou o que quer que venham a substituí-las. Não é fácil lidar com um mundo sem curtidas.

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