Foto: Agência Loi

Consultora, mestre em Filosofia, maquiadora. Magô é gente e não quer rótulos

“Meu jeito não é suave feito os discursos que ganham maior visibilidade nas redes. Você recebe apoio se assume essa leveza. Senão tem de se conscientizar como eu tive, que o crescimento (em números) vai ser lento. Mas há também no formato algo que me incomode. Nem tudo cabe num vídeo.”

É realmente impossível reunir em um vídeo, ou utilizando apenas esta plataforma, a complexidade de Magô, que aos 33 anos mora em São Paulo e se relaciona com a cidade e com o mundo tentando deformar as lentes. É preciso desver, borrar limites e reconhecer a amplitude humana.

Trans, mestra em Filosofia, maquiadora, consultora que pensa inovação e criatividade a partir da diversidade, gente. Qualquer rótulo é pequeno demais, Magô existe e está em busca de si. “Não pude mais ignorar o fato de que existir enquanto Magô era tão necessário quanto a fotossíntese dos corais surrados pelos derramamentos de óleo oceano afora”, ela conta na entrevista a seguir:

Você sempre soube que era a Magô, que era a única pessoa que existia em você?

“Sempre soube” é saber por tempo demais! E rejeito a ideia de qualquer tipo de “natureza” que seja “essência” porque frequentemente ideias deste tipo são utilizadas para negar a humanidade e existência de tanta gente por aí. É também contra a ideia de permanência e estabilidade, noções tão fundamentais pra todo tipo de terrorismo de gênero que me levanto e convido as pessoas a se levantar.  Então eu diria que passei a saber desde cedo que não cabia. Aquela roupa que não nos serve e a gente é obrigada a vestir? Então. Foi só recentemente que o fato de eu ter podido olhar, ver e reparar tornou-se irremediavelmente pertinente para minha possibilidade de permanecer viva e vivente, não pude mais ignorar o fato de que existir enquanto Magô era tão necessário quanto a fotossíntese dos corais surrados pelos derramamentos de óleo oceano afora.

“Sempre soube” é saber por tempo demais! E rejeito a ideia de qualquer tipo de “natureza” que seja “essência” porque frequentemente ideias deste tipo são utilizadas para negar a humanidade e existência de tanta gente por aí.

Como foi seu processo de transição? O que você poderia falar para as pessoas que estão passando pelos desafios que você passou?

Existem muitas pessoas trans e travestis no armário eu sei. E também muitas para o qual o armário não é mais uma opção. Existe ao mesmo tempo muita pluralidade dentre nós que não somos cis, que nos reivindicamos trans e/ou travestis. Assim como para pessoas cisgêneras a pluralidade também é fato. De corpos, de imagem, de construção, de destruição, de negação de naturalizações bizarras de gênero, de reafirmação de outras tantas. Então eu diria para quem está no início de uma transição que: 1) tente não definir a meta e quando bater, dobre-a! Pode parecer só uma piada, mas não é. Quando a gente estabelece um desenho tão perfeito de onde se deseja chegar a gente não sabe muito bem o que fazer com o que se tem quando partiu. É importante olhar para o que temos disponível. Olhar melhor para o nosso corpo hoje e o que nos leva a penar. A gente não pode esquecer nunca que é no contato com a sociedade, na interação com leis e códigos que surgem os dilemas do não caber. O problema está em quem? O que não significa que tudo isso não crie problemas sérios pra gente…. há muita motivação envolvida. Dores e traumas, submissões e revoltas. É preciso pegar leve consigo porque já tem ator e atriz demais nessa arena que não vai facilitar nossa passagem. A transição não deveria ser uma exclusividade de pessoas trans e travestis. Se você comparar as fotos dos desafios dos 10 anos de instagrammers, sejam homens cis ou mulheres cis, vai perceber que as transições de gênero cis são naturalizadas. As não cis foram por muito tempo e hoje timidamente tentam escapar desse histórico que nos viu como doentes de gênero e dignas de toda sorte de normalização violenta. “Até hoje” eu digo porque não basta trocar de capítulo em um manual psiquiátrico internacional de doenças para deixarmos de sermos vistas como pessoas doentes. A transição é coletiva! O meu processo ainda é. Só termina com o fim da vida. Agora, se a pergunta tinha a ver com hormônios e cirurgias eu te convidaria a pensar nos hormônios que tomam homens e mulheres cis. O que não significa que não existam diferenças, apesar de eu propor aqui aproximações na tentativa de escapar de uma objetificação. Não há nada na trajetória trans/travesti que não tenha alguma coisa a ver, seja pouco ou muito, com transições cis. Foi a cisgeneridade quem pariu a categoria: ela que embale!

Quando a gente estabelece um desenho tão perfeito de onde se deseja chegar a gente não sabe muito bem o que fazer com o que se tem quando partiu (Foto: João Bertholini @joaobertholini )

Foi para falar sobre isso que você criou o canal no YouTube. Por que ainda é difícil vermos pessoas trans assumindo os canais com seus discursos?

Meu canal no YouTube está sem vídeos há anos. Mas não abandono a ideia porque tenho muito material que não pude editar e ainda pretendo publicar mesmo anos depois. Registro para mim é sagrado. Minha trajetória também porque para mim importa mais direção (ou falta dela) do que velocidade. Sou lenta e sem pretensões de rapidez. Comecei o canal porque Lúcio meu parceiro de vida me ajudou a gravar com suas câmeras porque trabalha com isso e tinha os equipamentos. Parei de editar porque voltei a estudar. Fui colecionar mais traumas na travessia de uma instituição educacional. O que eu tinha na cabeça é um pensamento que há muito na classe média, o da emancipação pelos estudos. Tem a ver com possibilidade de acessos, que se confirma ainda. O que não se confirma é que esta seja a única maneira, o único método e caminho para “ser alguém”. Pelo contrário, a universidade não é lugar pAra qualquer um. O que não significa (ou deveria significar menos) que não deva ser aberta a quem desejar. Desejo sorte e um bom acompanhamento terapêutico. Apesar dos fechamentos recentes e desincentivos mil e do descrédito à política de cotas. Eu não pretendo voltar para a universidade. Nem enquanto educanda nem educadora. Hoje só frequento aulas-debate e apresentações para as quais sou convidada. Gosto de entrar sabendo que saio dali algumas horas. É sufocante para mim. Pretendo retomar meu canal em breve, mas preciso de apoio pra isso. Não tenho renda para assumir riscos de me jogar a um trabalho tão difícil que é produzir, realizar e publicar vídeos e que toma tanto tempo sem que para isso eu esteja minimamente segura quanto aos boletos. E porque meu jeito não é suave feito os discursos que ganham maior visibilidade nas redes. Você recebe apoio se assume essa leveza. Senão tem de se conscientizar como eu tive, que o crescimento (em números) vai ser lento. Mas há também no formato algo que me incomode. Nem tudo cabe num vídeo e eu sou grandona demais, apesar de gostar do exercício/desafio de sintetizar questões. As pessoas se dão ao luxo de serem preguiçosas em pleno Brasil 2019. O que diz muito sobre o lugar que ocupam. Se houvesse regulação das mídias no Brasil e mais acesso a ferramentas de vídeo teríamos mais pessoas trans/travestis no YouTube. Hoje acredito mais no Instagram, apesar do Facebook que faliu pela armadilha dos algoritmos. Gosto do Instagram pelo dinamismo.

É sufocante para mim. Pretendo retomar meu canal em breve, mas preciso de apoio pra isso. Não tenho renda para assumir riscos de me jogar a um trabalho tão difícil (Foto: Camila Falcão @camifalcao)

Como podemos mudar isso? Todos podem colaborar?

Saiba quem você segue. Valorize e divulgue o trabalho de quem tem o que dizer e tem mais a ver com o que você sabe ou não sabe e quer saber mais. Não dê palco para quem já tem milhões de inscritos ou (per) seguidores, mas é incapaz de se posicionar politicamente, por exemplo. Virtualidade e realidade não são um o contrário do outro. Ou pelo menos não deveria ser.

Qual você acredita ser a importância de amplificar esses discursos? Informar ainda é o melhor caminho?

A importância é anterior: qual a disponibilidade para deformar a própria lente que você utiliza para ver e ler o mundo? Acha mesmo que o resto de toda gente cabe na sua própria régua? Eu prefiro falar de disponibilidade para TRANSver o mundo e assim abrir espaço. Porque não gosto de essencializar os discursos. Há muitos discursos assumidos por pessoas que também como nós são lgbtqia+, mas que na minha aposta ética não fazem sentido, até porque não vivemos alheios à sociedade que nos pariu. Não estamos numa nuvem on-line livres de lgbtfobia, racismo, cis-sexismo… desprendidas das mesmas lentes que hoje (mas também há algum tempo) estamos querendo deformar. Até porque eu acredito que já temos exemplos suficientes para rejeitar a ideia de que orientação sexual e identidade de gênero dissidentes sejam necessariamente o mesmo que um comprometimento ético e político dessa transvisão. O período eleitoral já foi suficientemente sufocante neste tipo de pedagogia do absurdo. Do que adianta a inconformidade diante de tanta gente boa que deveria ter amplificada sua voz se você continua a seguir as mesmas merdas de sempre?

Não gosto de essencializar os discursos. Há muitos discursos assumidos por pessoas que também como nós são lgbtqia+, mas que na minha aposta ética não fazem sentido, até porque não vivemos alheios à sociedade que nos pariu.

E com o trabalho na Pajubá Diversidade (@pajubadiversidade), qual é o objetivo?

O objetivo é poder dar o truque em cima do truque que tanto deram e continuam a dar na gente. É colocar uma série de estudos e compromissos a serviço de um trabalho difícil que é o da consultoria em diversidade nas empresas, um terreno repleto de tanta gente desubicada Pollyana-nos-lindos-campos-verdejantes, mas também de algumas pessoas mais honestas, seja do ponto de vista de quem reúne material e pessoas pra deformar aquelas mesmas lentes que já falei, só que no ambiente de trabalho. Seja também do ponto de vista das pessoas por trás das empresas que estão comprometidas a olhar para dentro, a fomentar discussões e ampliação de seu corpo de funcionários tentando escapar do que coloca como compromisso. O objetivo é também cobrar pelas dicas tão preciosas que reunimos e que já há tanto tempo distribuímos sem contrapartida financeira. As pessoas confundem trabalho e essencializando a identidade acham que não fazemos mais que a nossa obrigação em assumir compromissos pedagógicos no processo de aprendizado de um outro mundo. Nada mais perverso. Visibilidade não paga nada. O objetivo é, portanto, sobreviver numa cidade onde o direito à moradia é escasso e a noção de acesso à cidade está monetizado, capitalizado.  Os meus compromissos éticos e políticos não se descolam no meu fazer profissional. Também não acredito na separação pessoal versus profissional.

As pessoas confundem trabalho e essencializando a identidade acham que não fazemos mais que a nossa obrigação em assumir compromissos pedagógicos no processo de aprendizado de um outro mundo.

É necessário cada vez mais que nós LGBT nos unamos para enfrentar os tempos atuais?

Necessário é pensar sobre a ideia que a gente faz de união. Acredito em alianças possíveis. Em alianças que sejam pertinentes, potentes na medida de suas limitações. Já precisávamos disso antes dos tempos atuais. União também para destruir o conceito de inimigo que não esteja intimamente compromissado na tarefa de TRANSver a nós primeiro enquanto parte disto que está se querendo enfrentar por meio dessa mesma palavra: união. Tem gente que está mais apegada no desenho do inimigo como um conjunto de posições inaceitáveis pra reafirmar posições que nem elas mesmas sabem por que defendem. As coisas precisam fazer sentido para os outros. Odeio regrinhas.

Como o mestrado em Filosofia te ajudou a se entender e entender o outro?

O mestrado em Filosofia me ajudou pouco. Eu não pretendo entender o outro porque, como diria Clarice, “viver ultrapassa todo entendimento”. Eu não batalho e luto somente para o que sou capaz de compreender. Isso não é empatia, é conveniência. É preciso deixar que viva também tudo aquilo que não sou capaz de entender, o que não consigo alcançar. E isso faz sentido para mim. O que não significa que eu apoie discursos cujos compromissos sejam o que para mim são inegociáveis. Aliás, com o processo todo do mestrado eu fiquei mais firme ainda sobre o quão inegociável é a deformação da minha própria régua. Eu não basto! Ou não deveria bastar. Mesmo grandona com pretensões de ser enorme ainda sou pequena demais para saber de tudo. Sei pouco. Prefiro assim.

É preciso deixar que viva também tudo aquilo que não sou capaz de entender, o que não consigo alcançar (Foto: Rafa Morse @rafaelmorse)

Falta empatia no mundo?

Falta, mas falta também hidratação na pele. Como pode alguém pleitear governo de um país se nem o primeiro território que se habita é digno de cuidado? Se a pele parece carne podre? Falta também uma boa dose de ubicação, que é o compromisso em elaborar o lugar desde onde se fala. Não para pedir desculpas sobre as posições de privilégio que se ocupa (nada mais fútil e vazio), mas no desafio de tornar menos distantes ou irremediáveis as assimetrias entre nós. Empatia não é tudo. Até porque a gente já sabe o que acontece quando chega a página 2 e as posturas de quem se diz ter “empatizado” destoam demais daquilo que dissemos ter entendido. Falta entender que nem tudo é sobre a gente ainda que COM a gente.

Instagram @mulhertrans