Travestis não são simulacros e não devem ser confundidas como “cópias de mulheres”
Por Fe Maidel*
A primeira existência travesti documentada na Terra Brasillis é a de Xica Manicongo. Escrava na Bahia em 1591, foi presa pela Inquisição por se recusar a se vestir “como homem”. Estava sujeita à pena de ser queimada viva por tal crime. Ao que consta, em nome da sobrevivência, ela cedeu à ordem.
O senso comum afirma que “mulher” tem vagina e deve se sentir e se comportar de maneira “feminina”. Já quem tem pênis, é “homem” e espera-se que se comporte e se sinta como tal. Essa visão, endossada pelo conhecimento biomédico vigente desde o século XIX, implica numa limitação das possibilidades que cada pessoa tem para se construir e a partir das quais organiza a sua identidade e percepção de gênero. A referência que resta são os órgãos genitais, quase exclusivamente.
Ainda segundo o senso comum, o corpo representaria, em nossas vivências, o que temos de mais “natural” e particular, o que determinaria a identidade das pessoas. A experiência individual, impregnada de comportamentos, maneiras, relações e expressões da sexualidade, traduziria o que é esperado pelo grupo social de forma “naturalizada”.
A sexualidade adquiriu, assim, uma função determinante na classificação do que é bom ou ruim na sociedade, para a qual é fundamental desenvolver pessoas “de bem” e produtivas. Visando uma estabilidade social, pressões sociais e a vigilância pública tendem a estabelecer a heterossexualidade “homem” + “mulher”, como padrão saudável, normal e natural, presente em várias esferas da vida social. Isso gera segregação dos “divergentes”, que são considerados “degenerados” ou “desviantes”.
No entanto, a não convergência espontânea entre desejo, sentimentos, a forma dos corpos é muito mais frequente do que se imagina. Não há como estabelecer, necessariamente, uma correspondência direta entre as expectativas do que é considerado como “normal”, “natural” ou “certo”. Atribuir um gênero a alguém parte de referências, regras e suposições que o observador nutre sobre quem está sob seu crivo, e da comunicação e acentuação de determinados sinais do ente observado para o mundo, numa relação dialógica.
Os dados também evidenciam um viés racial. Em 2017, 57% das vítimas eram negras. Segundo o Dossiê de Assassinatos e Violência contra Travestis e Transexuais no Brasil, de 163 assassinatos de pessoas trans, 82% das vítimas foram identificadas como pessoas pretas e pardas.
Mas, ao falar em “identidade de gênero” está se reconhecendo as diferentes possibilidades dos trânsitos de gênero que os indivíduos podem exercer. Assim, pensar as experiências “trans” e suas múltiplas vivências ajuda a questionar e problematizar as normas que regem os conceitos referentes ao sexo, à socialização, ao gênero e, no limite, à nossa humanidade.
A travestilidade se coloca em não-conformidade direta frente à alegada “coerência” entre genitália/vestimenta/gestualidade exigidas socialmente e isso lhe permite criar expressões alternativas às identidades de gênero naturalizadas.
Em 2006, a Organização das Nações Unidas (ONU) apresentou os Princípios de Yogyakarta como recomendações aos Estados, sistematizando direitos referentes à orientação sexual e identidade de gênero diversas da maioria dos indivíduos que, reconhecidos universalmente a todos os seres humanos, na prática, deixam de ser aplicados deliberadamente. Pessoas LGBT não são exceção ao entendimento básico da aplicação dos direitos humanos.
Aproximadamente 400 anos nos separam de Xica Manicongo, se levarmos em conta que a expectativa de vida de uma travesti, muito inferior à da população geral brasileira, podemos perceber que isso decorre do processo de exclusão social e da falta de oportunidades, negadas cotidianamente a nós.
Contrariando inclusive o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), em seus artigos 5º e 18º, muitas pessoas trans são empurradas para as ruas aos 13 ou 14 anos, pois suas famílias não entendem o processo de construção da identidade de gênero e acabam expulsando-as de casa. Elas acabam sem segurança, educação, sujeitas à violência, à morte.
Na esteira desse quadro, levantamentos considerando apenas agressões registradas em unidades públicas de saúde, mostram que 11 pessoas trans são agredidas a cada dia no Brasil. Mais de quatro mil agressões ao ano. Os dados também evidenciam um viés racial. Em 2017, 57% das vítimas eram negras. Segundo o Dossiê de Assassinatos e Violência contra Travestis e Transexuais no Brasil, de 163 assassinatos de pessoas trans, 82% das vítimas foram identificadas como pessoas pretas e pardas.
Pensar as experiências “trans” e suas múltiplas vivências ajuda a questionar e problematizar as normas que regem os conceitos referentes ao sexo, à socialização, ao gênero e, no limite, à nossa humanidade.
Por não darmos a devida atenção e acolhimento, reservamos às pessoas trans um lugar marginal na sociedade. Naturalizamos a violência e assim estabelecem-se relações de poder, implicando em desigualdades, preconceitos, discriminações. Sistematicamente, as identidades chamadas desviantes são perseguidas, abusadas, presas, torturadas.
Travestis não são simulacros e não devem ser confundidas como “cópias de mulheres”.
Sobrevivemos, resilientes.
*Fe Maidel é psicóloga, artista plástica e gerente de projetos. Recém-eleita para o Conselho Municipal de Políticas para Mulheres, secretária Municipal da Diversidade23- Cidadania, trabalha junto a entidades públicas e da sociedade civil focando o resgate e a sustentação da autoestima feminina como meio de ampliar a participação delas na dinâmica da sociedade.
Ernesto
05/02/2020 13:14
Fe, parabéns, muito bom o texto, assertivo, bem redigido
Abraço
Ernesto