Construída a partir de: “A invenção da raça e o poder discricionário dos estereótipos”, G. Seyferth

Por Fe Maidel*

Pensar o conceito de “Raça”, a partir da diversidade encontrada na espécie humana, implica em lidar com influências criadas pelo senso comum, por ideologias segregacionistas, por antecedentes positivistas e deterministas da ciência e com áreas em evolução dentro da própria academia. Lidar com “raça”, mais que criar esquemas classificatórios, implica em reconhecer que não há neutralidade quando se trata do “outro”. Constata-se isso pela existência de práticas como o etnocentrismo, ou a possibilidade de subqualificar a prática, a cultura e as características de grupos diferentes do referencial hegemônico; os estereótipos, atribuição de valor, em geral depreciativa e biologizante de algumas características de um grupo, definindo “lugares de poder” (2).

Já o racismo é resultante da sobreposição da ciência e da ideologia de superioridade de uma “raça” sobre outras, baseada em atributos físicos (2) e comportamentais, como determinante da cultura. Este discurso, carregado de cientificismo, aporta no Brasil em meados do séc. XIX, embasando as políticas pré-abolição e de “branqueamento” da população brasileira, com negros e mestiços sendo vistos como empecilho ao desenvolvimento do país e a miscigenação seletiva, como alternativa ao fato. Esta ideologia, que estava em acordo com a visão de mundo da elite econômica brasileira, influenciou a maneira pela qual vários extratos sociais, como raças, classes, sexo e grupos étnicos, todos considerados inferiores, eram “organizados” na sociedade brasileira, em favor da classe hegemônica (2).

Lidar com “raça”, mais que criar esquemas classificatórios, implica em reconhecer que não há neutralidade quando se trata do “outro”.

A partir da década de 30, mudanças econômicas e políticas no país e no mundo (o fim da política “café com leite”, Getúlio Vargas, o “crash da Bolsa de Nova York”, entre outros) fazem com que o discurso racista explicito dê lugar ao que se convenciona como o “milagre” da democracia racial (1), minimizando a questão racial no Brasil, escondendo o preconceito arraigado e assimilando as culturas negras e indígenas como parte integrante da cultura nacional, como aponta Seyferth (1993) (7). No início dos anos 1940, o Brasil contava com uma população aproximada de 41 milhões de pessoas. Deste total, 50% eram mulheres, 35% se declaravam pretos ou pardos e apenas 16% estavam inscritos para votar (4). Este era o percentual de pessoas que detinha o poder para tomar decisões que afetariam a todos os brasileiros.

Após a 2ª Guerra Mundial o Brasil, desfrutando de uma imagem positiva em termos de relações inter-raciais, foi considerado uma espécie de “laboratório” e foco de um conjunto de pesquisas patrocinado pela Unesco sobre suas as relações raciais (3). A ideia do projeto branqueador, que “faria do Brasil uma Europa dos trópicos” (1) foi substituído por “um experimento exclusivamente americano no qual europeus, índios e africanos tinham se juntado para criar uma sociedade genuinamente multirracial e multicultural” (1).

Relação entre raças no Brasil do século XIX em obra de Jean-Baptiste Debret

O projeto Unesco produziu um amplo inventário sobre o preconceito e a discriminação racial no Brasil, que evidenciou uma forte correlação entre cor ou raça e status socioeconômico (3) , apontando “que aquilo que era chamado apenas de pobreza, tinha uma cor” (2) e gerou, por parte da organização, uma série de declarações em 1950, 1952 e 1964 (7) acentuando que os estudos científicos acerca das raças humanas têm como finalidade facilitar a análise dos fenômenos evolutivos, deixando claro que o racismo não tem qualquer respaldo da ciência.

Guerreiro Ramos, citado por FGV (2017) (3), coloca com propriedade, que “o problema do negro só existe se pensarmos que a sociedade deveria ser de brancos”.

Já Seyferth (1993) (7) aponta que “nenhum indicador da posição de classe é capaz de suprimir o estigma da raça numa sociedade onde os lugares atribuídos aos não brancos são o elevador de serviço, a cozinha ou, de forma simbólica, a senzala (que remete ao passado escravo e, por extensão, à condição de classe dominada)”. Percebemos assim, que o uso sistemático de estereótipos e a desvalorização dos atributos das “diferenças” está a serviço de colocar cada um “em seu lugar” na sociedade (7) mantendo o status quo dominante e mantendo a estratificação social inalterada.

Quando extrapolamos a questão de raça/etnia e abarcamos questões de gênero, orientação sexual, religião ou sua combinação, estabelecemos padrões que direcionam a práticas preconceituosas e discriminatórias da sociedade contemporânea. A homossexualidade, por exemplo, que no passado foi considerada (e, por muitos, é até hoje) um pecado pela religião, uma doença pela medicina ou desvio de conduta pela psicologia, têm nos movimentos sociais, nas últimas décadas, uma contribuição sem precedentes para a superação do estigma que reprova e persegue as pessoas LGBTQIA+.

A atuação desses movimentos tem provocado mudanças no imaginário e agregado conhecimentos a respeito da homossexualidade, de maneira a tirá-la da “clandestinidade”.

A atuação desses movimentos tem provocado mudanças no imaginário e agregado conhecimentos a respeito da homossexualidade, de maneira a tirá-la da “clandestinidade”(2). O mesmo se dá com os movimentos feministas e com os movimentos negros. Enquanto o estereótipo e o preconceito estão no campo das ideias, a discriminação, uma atitude, está no campo da ação, (2) negando oportunidades, acesso, humanidade, gerando omissão e invisibilidade. A ideia de desigualdade nas “raças humanas”, formulada por cientistas e intelectuais há quase um século, tem profundas raízes populares (7), postura que se manifesta também em relação à questão da LGBTfobia e na distinção referente às mulheres, “A família patriarcal organiza-se em torno da autoridade masculina; para manter esta autoridade e reafirmá-la, o recurso à violência – física ou psicológica – está sempre presente, seja de maneira efetiva, seja de maneira subliminar”. (6).

Procuramos aqui, focando a raça e estereótipos como eixo principal, mostrar como o racismo não é fenômeno isolado, mas sistematização de manutenção de poder que se apoia em várias frentes além da cor, como a diminuição do valor da mulher, do LGBT, das crenças afro e da miscigenação, entre outros.

*Fe Maidel é psicóloga, artista plástica e gerente de projetos. Recém-eleita para o Conselho Municipal de Políticas para Mulheres, secretária Municipal da Diversidade23- Cidadania, trabalha junto a entidades públicas e da sociedade civil focando o resgate e a sustentação da autoestima feminina como meio de ampliar a participação delas na dinâmica da sociedade.

BIBLIOGRAFIA