Por Fe Maidel*
Construída a partir de: “O Corpo e a Sexualidade”, Jeffrey Weeks.
O propósito deste texto é estabelecer nossa preocupação, enquanto construcionismo, com o fato de nossa cultura privilegiar e celebrar a heterossexualidade, marginalizar e discriminar a homossexualidade, atribuir tanta importância à sexualidade (e como isso veio a acontecer), questionar por que a sexualidade feminina é vista como submissa à sexualidade do homem e a dominação masculina é tão endêmica na cultura. “O que há a respeito da sexualidade que nos torna tão convencidos de que ela está no centro de nosso ser? Isso é igualmente verdadeiro para homens e mulheres?” (4).
Embora sentimentos, desejos e identidades sexuais se manifestem no corpo biológico, a sexualidade é mais do que somente o “corpo”. A experiência individual, carregada de pressões e vigilância sociais, se traduz em comportamentos, relações e expressões da sexualidade a partir do que é esperado de forma “naturalizada” pelo grupo social (1) e tem tanto a ver com nossas crenças, ideologias e imaginações quanto com nosso corpo físico. Não há, necessariamente, correspondência direta entre as expectativas do que é considerado “normal”, “natural” ou “certo”. Desejos, sentimentos, a forma dos corpos e como os indivíduos atuam estes componentes de forma complementar frequentemente não convergem de forma espontânea (1), mostrando que a sexualidade não é resultado de uma simples evolução. No entanto, a sexualidade tem papel central no modo como o poder atua na sociedade moderna.
Embora sentimentos, desejos e identidades sexuais se manifestem no corpo biológico, a sexualidade é mais do que somente o “corpo”.
Agentes como religião e a filosofia moral ocidentais, o Estado e, mais recentemente, a Medicina e a Sexologia, têm como centro de suas preocupações o comportamento sexual e as formas reguladoras de nossas atividades corporais, exercendo enorme influência no debate sobre o tema. É através dos corpos, masculinos ou femininos, que experimentamos o prazer, a dor, as necessidades e desejos sexuais profundamente entranhados em nós, como indivíduos, vivenciando experiências bastante diferentes. O “sexo” hoje pode ser visto como uma construção social, modelado em situações sociais concretas e alimentado por correntes de pensamento que implicam na consciência de que a nossa forma de fazer as coisas não é única, forçando uma reflexão sobre nosso etnocentrismo e como as coisas são, questionando a fixidez e as muitas certezas de nossas tradições sexuais e as ideias predominantes, como a natureza aparentemente sólida do gênero, da necessidade sexual e da identidade. (4).
O senso comum, endossado pelo conhecimento biomédico vigente desde o século XIX, determina a identidade das pessoas a partir do corpo, como “homem” ou “mulher”, afirmando “homem” como possuidor de pênis e “mulher”, possuidora de vulva, numa referência quase exclusiva à genitália externa. Essa visão implica no modo como cada indivíduo deve se sentir e se comportar em conformidade à sua corporalidade, inferindo que isso seja o que temos de mais “natural” e particular, limitando as vivências e possibilidades que cada pessoa tem para se construir e a partir das quais organizará a sua identidade e percepção de gênero. (1).
O senso comum determina a identidade das pessoas a partir do corpo, como “homem” ou “mulher”, afirmando “homem” como possuidor de pênis e “mulher”, possuidora de vulva.
Lastreado por um poderoso aparato da linguagem, tornou-se possível classificar, hierarquizar e discriminar os seres sociais, podendo assim colocar em dúvida tanto a firmeza dos homens (a masculinidade e honra são questionadas com a palavra “maricas’, por exemplo) quanto a honestidade das mulheres (uma mulher independente passa por vulgar ou mundana por não estar atrelada a um homem) (2).
De acordo com Sívori (2010), para a maioria dos pais e professores, ainda é fundamental ensinar e produzir filhos e alunos “normais”, de corpos e mentes “sadias”, o que neste caso entende-se com uma orientação heterossexual, que permita trazer netos, o acesso ao que é considerado uma vida feliz, que é ter uma família composta por “papai, mamãe e filhos”. Neste quadro, ainda que os “privilégios masculinos” prevaleçam como uma das características centrais da sociedade, há evidências suficientes para confrontar a ideia da dominação masculina como inevitável ou imutável. As mulheres, em suas práticas cotidianas, têm criado espaços para determinarem suas próprias vidas e sua própria definição de necessidades.
Para a maioria dos pais e professores, ainda é fundamental ensinar e produzir filhos e alunos “normais”, de corpos e mentes “sadias”, o que neste caso entende-se com uma orientação heterossexual.
A noção de pecado, construída pelas grandes religiões em torno de algumas condutas sexuais foi trocada, a partir do século XIX, por noções como “degeneração” ou “perturbação”, através do discurso científico da Psiquiatria (3). No séc. XX, enquanto Reich e outros ofereciam a “liberação sexual” e desafiam a sociedade repressora de nossa sexualidade, Foucault se contrapunha, afirmando que a sexualidade é um “aparato histórico”, demasiadamente envolvida com o poder para agir como uma resistência a este, rejeitando a “hipótese repressiva”.
Neste último século, recorrentemente, ocorreram debates sobre a moralidade e o comportamento sexual. A eugenia, que ajudou a fomentar o racismo nos anos entre-guerras, o controle da natalidade, a caça aos homossexuais, “degenerados” sexuais e, nos anos 70 e 80, uma reação contra o novo liberalismo, a permissividade e os excessos da década anterior, demonstraram uma série de preocupações diferentes, como a ascensão da nova direita e seus temas predominantes, o “declínio da família”, os potentes símbolos do “declínio nacional” representados pelo feminismo e a nova militância homossexual, as relações entre homens e mulheres e entre adultos e crianças, o problema do desvio sexual e as questões das diferenças, sejam de classe, gênero ou raça (4).
Examinando os dois termos usados para descrever a sexualidade, percebemos que sua invenção é sinal do grande esforço realizado desde o final do século XIX para dar maior definição a como se conceitua a atividade sexual, aos tipos e formas de comportamento e identidade sexuais: a “homossexualidade”, inicialmente uma variante possível da normalidade, foi transformada num julgamento médico-moral enquanto a “heterossexualidade”, o termo criado para circunscrever a norma. Esta necessidade em definir ambas mostra o quanto estão ligadas entre si. A homossexualidade, embora sempre tenha existido, se estabelece como categoria e identidade somente a partir do século XIX, num movimento de rupturas cruciais tão significativo quanto o movimento de gays e lésbicas nos anos 1960/70.
Ainda assim, mesmo após mais de um século de estudos, não há respostas conclusivas acerca de uma origem/causa biológica ou psicológica das homossexualidades, sendo mais viável pensá-las como possibilidades de vivenciar a humanidade. Isso não significa que tanto homossexualidade quanto heterossexualidade, sejam escolhas do livre arbítrio individual. Por isso o uso do termo “orientação”, ligando ao desejo, cuja construção está além da vontade e do arbítrio (3). O que, eventualmente, poderia ser pensado como “escolha” é o ato de tornar visível publicamente a expressão da própria sexualidade e a identidade de gênero, e não a orientação em si, o que muitas vezes representa, para o indivíduo, uma conquista política e subjetiva (1). Assim, surge a pergunta: “até que ponto as pessoas são responsáveis pelo próprio desejo? (2).
O que, eventualmente, poderia ser pensado como “escolha” é o ato de tornar visível publicamente a expressão da própria sexualidade e a identidade de gênero.
A diferença entre “opção” e “orientação” reside na questão de como o indivíduo se percebe em termos de desejo e como torna pública esta percepção (2). Dizer “eu sou gay” ou “eu sou lésbica” significa fazer uma declaração sobre pertencimento, assumir uma posição específica em relação aos códigos sociais dominantes. Devido ao fato de terem histórias diferentes, o modelo teórico baseado na homossexualidade masculina nunca conseguiu ser aplicável às mulheres. Mesmo assim, ambos passaram a ser rotulados pelo mesmo modelo psicológico, usando termos comuns para defini-los, como se compartilhassem a mesma causa. Isso provou-se incorreto ao longo do tempo (4).
“O aprendizado da sexualidade, a internalização das normas sociais sobre qual seria a forma correta e apropriada de ser homem e de ser mulher, está profundamente atrelada, articulada, com o tipo de atividade sexual que a pessoa pratica” (3). A vida sexual têm sido questionada de forma radical e se percebe, por parte da comunidade, disponibilidade em reconhecer a diversidade de crenças e comportamentos sexuais, o que acirrou o debate sobre como lidar com isso, tanto na política social como na prática pessoal, já que a resposta à questão sobre que o sexo é, ou deveria ser, depende dos significados que damos à sexualidade e das formas de controle que defendemos, tanto no âmbito privado quanto no público. Este reconhecimento da diversidade social e sexual tem enfrentado a não aceitação positiva da diversidade e do pluralismo moral, por provocarem ansiedades em grupos com valores mais conservadores, com reações de retração e retaliação ante a mudança.
Este reconhecimento da diversidade social e sexual tem enfrentado a não aceitação positiva da diversidade e do pluralismo moral.
Percebe-se, apesar disto, uma mudança significativa nas relações familiares, tanto em relação ao casamento quanto à percepção dos vários tipos diferentes de família existentes, denotando certo reconhecimento crescente dos fatos da diversidade social e sexual. “Há uma evidência cada vez maior de que as distinções entre vida pública e privada talvez não sejam suficientemente sutis para lidar com algumas das questões sexuais que agora estão em evidência.” (4). Parece provável que os desafios da diversidade sexual irão crescer nos próximos anos, trazendo em seu bojo a questão da sexualidade e sua centralidade nos debates sociais e morais. “Aquilo que consideramos como legitimamente permitido no privado sempre está controlado por valores maiores sobre o tipo de sociedade que queremos ver” (4).
A organização social em torno da sexualidade não é fixa ou estável, mas modelada sob circunstâncias históricas complexas, como nos mostram os estudos históricos, e o que se configura adiante permite antever mudanças e radicalizações nos modos como nos relacionamos com nossos corpos e sexualidades. Eis, aí, nosso próximo desafio: entender, os processos que estão em ação nestes novos períodos da modernidade.
*Fe Maidel é psicóloga, artista plástica e gerente de projetos. Recém-eleita para o Conselho Municipal de Políticas para Mulheres, secretária Municipal da Diversidade23- Cidadania, trabalha junto a entidades públicas e da sociedade civil focando o resgate e a sustentação da autoestima feminina como meio de ampliar a participação delas na dinâmica da sociedade.
Referências
- Carrara, Sérgio et al. (2010) Curso de Especialização em Gênero e Sexualidade V. 1. Rio de janeiro, CEPESC. Brasília-DF, Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres.
- Simões, Julio. Video-aula. Disciplina 3 – Sexualidade e Orientação Sexual. Curso de Especialização em Gênero e Sexualidade V.1. Rio de janeiro: CEPESC. Brasília-DF, Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres, 2010.
- Sívorí, Horácio. Entrevista. Disciplina 3 – Sexualidade e Orientação Sexual. Curso de Especialização em Gênero e Sexualidade V.1. Rio de janeiro: CEPESC. Brasília-DF, Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres, 2010.
- WEEKS, Jeffrey. O corpo e a sexualidade. In: LOURO, Guacira Lopes (Org.). O corpo educado: pedagogias da sexualidade. Belo Horizonte: Autêntica, 2000.