Precisamos pautar com urgência o preconceito ainda sofrido por LGBTs na zona rural brasileira
Há uma violência no campo que passa muito longe da popularidade de Chico Bento, da cultura de Mazzaropi e da irreverência de Rosa e Rosinha. Não há nada de engraçado, fofo ou positivamente significativo nas agressões físicas e psicológicas sofridas incessantemente desde a mais tenra idade por LGBTs na zona rural, no campo, nas fazendas, nos sítios, nas chácaras, nas comitivas, nos leilões, na agricultura, na pecuária, na agricultura familiar, no agronegócio, em todo este terreno imenso.
Cito tantos quase sinônimos para mostrar que muitas são as facetas do agro, vários são os tamanhos. Mas em toda as esferas – em umas mais e em outras menos – há um preconceito contra pessoas LGBT. Porque o homem do campo, apregoa o senso comum, primeiramente é “homem” do campo – mesmo sendo a maioria da agricultura familiar feita por mulheres. O homem do campo é forte, agressivo, doma o boi à unha, ara a terra na enxada.
Logo nasce de uma semente de erva daninha um emaranhado de galhos que dá um nó no discernimento. Quem é afeminado não tem essas qualidades. Como uma bicha louca pode esticar uma cerca de arame farpado? Uma mulher trans comandando uma comitiva boiadeira? Impensável em um mundo rural que se afoga em pantanais de ignorância e não deixa o progresso intelectual fazer sua travessia estrada afora.
Meninos afeminados que moram na zona rural são todos os dias fortemente pressionados a serem os machos de botinas, calças sujas de barro ou merda de vaca, o sucessor do pai. Mas na terra grossa do preconceito não germina a possibilidade de um pai pensar que o filho, mesmo gay, mesmo afeminado, pode tocar o negócio da família, a terra, ele não é parte dela. Tratores não são para mariquinhas, é preciso virar homem antes de aprender a arrear um cavalo.
Como uma bicha louca pode esticar uma cerca de arame farpado? Uma mulher trans comandando uma comitiva boiadeira? Impensável em um mundo rural que se afoga em pantanais de ignorância e não deixa o progresso intelectual fazer sua travessia estrada afora.
Talvez você encontre um bom espaço junto a sua mãe na horta, nos trabalhos um pouco menos pesados. É muito provável que fique responsável pelos animais menores e todos os dias brinque de jogar milho para as galinhas e para os patos – enquanto tenta entender porque não te ensinaram a laçar um boi. Fazer queijos e compotas também pode ser um caminho para, de alguma maneira, dar um pouco de sabor mais agradável a um cotidiano amargo como a gairoba.
Eu espero que você tenha forças para mostrar que o homem do campo pode ser gay, pode ser mulher, cis, trans. Mostrar que é preciso apenas competência e vontade de trabalhar.
Porque toda vez que eu penso nessa repressão – que eu senti na pele na infância no Pantanal, inspirando este texto – eu me lembro do meu amigo Tiago. Gay, bichona, fervidíssima com a nossa turma de amigos. Até que um dia, na buatchy, anunciou o noivado com uma moça, e continuava gay. Precisava casar com mulher para garantir que sucederia o pai na fazenda. Casou. Tem filhos. Suspira. É feliz?
Também me lembro de um menino de 15 anos que conheci em um assentamento no município de Serra Azul, Estado de São Paulo. Eu percebi que ele era gay, me aproximei e comecei a conversar. Meu coração foi apertando enquanto o dele se abria porque eu era um dos raros ouvintes confiáveis no caminho dele. Ele não podia contar para sua família que tinha acabado de conhecer um menino super legal, que estava gostando desse menino, que estava descobrindo o amor.
“Meu irmão me mata se eu for gay”, ele me disse. O pavor é porque o “se eu for” não existe, ele é. Mas o irmão acreditava que reprimindo, ameaçando de morte, ele não seria mais gay. E a ameaça parecia bem real, infelizmente. Porque no campo há sim uma justiça quase própria muito parecida com tempos há muito idos. Não é exagero dizer que muita gente defenderia um irmão ter matado o outro porque era gay.
O que esse menino mais desejava? Mudar-se para longe da família, ser quem ele sabia que era, ser feliz. A homofobia no campo violenta e afasta as pessoas de um lugar que todos os dias se vê frente ao desafio da sucessão no campo. Melhor acabar do que ter agricultor viado?
Tratores não são para mariquinhas, é preciso virar homem antes de aprender a arrear um cavalo.
Talvez quem mora nas cidades e nunca teve uma experiência rural de vida não entenda a extensão deste problema. Muitos são os tiagos. Muitas são as vidas abafadas por uma camada de terra pesada que foi sendo construída há muito tempo misturando machismo, religião e falta de visão. Uma pá de intolerância compacta tudo isso. Os tiagos são sementes que não puderam se colocar para fora desta terra, crescer, pegar sol, compor toda essa diversidade que nós somos.
Mas nem tudo é terra devastada e alguns canteiros começam a brotar. Algumas empresas do setor agro, principalmente ligadas à tecnologia e à inovação, já ensaiam políticas de diversidade. A Confederação Nacional dos Agricultores Familiares e Empreendedores Rurais (Conager) acaba de criar sua Secretaria Nacional LGBT+ Casa Tibiras (saiba mais aqui).
O agro pode ser tudo, mas precisa antes de qualquer coisa ser de todes.
Maria Célia
28/08/2020 14:02
Parabéns