Diretor Rafael Gomes fala à Ezatamag sobre amor, clichês, padrões de relacionamento e o fazer cinema em tempos de salas fechadas

O longa brasileiro “Música Para Morrer de Amor” (leia mais aqui) chegou ao público justamente em tempos de pandemia, com cinemas físicos fechados, tendo que apostar forte no on demand do Now, onde tem feito sucesso. Mas se é uma pena não poder assistir na telona naquela experiência deliciosa da sétima arte, é uma dádiva que tanta sensibilidade e esperança no amor cheguem exatamente quando estamos precisando tanto delas. E precisaremos cada dia mais.

É justamente o objetivo do diretor Rafael Gomes, que conta à Ezatamag ser seu desejo maior que o filme chegue como um abraço caloroso, carinhoso, reconfortante. “Todo mundo está muito carente disso neste momento e o filme neste sentido é nostálgico porque não estamos vivendo isso no momento, mas ao mesmo tempo ele cria uma pequena projeção de futuro.”

Um futuro com novo longa de Rafael no horizonte, o lançamento de “Meu Álbum de Amor”, que “desta vez é um musical mesmo, os personagens cantam em cena músicas compostas para o filme”. A seguir ele fala sobre a novidade, revela qual música o faz morrer de amor e reflete sobre como o tempo pode passar e nos ensinar, mas não nos endurecer.

Sempre vale a pena morrer de amor para viver, sempre vale a pena qualquer clichê quando se ama?

Como está sendo a recepção do filme? Como sentir isso sem os cinemas abertos?

A loucura é que não dá para saber muito bem porque esse lançamento é online, no fim das contas. Não tem o contato com as pessoas, não dá para ir às salas saber se elas estão cheias. Tem os números do Now que eu considero bons, o filme entrou em promoção e eles pediram para renovar porque tinha vendido muito bem. Isso é um bom sinal, a bilheteria está boa, dá para dizer assim. Mas é muito louco porque não tem muito parâmetro. É um jeito novo de fazer.

Quando o filme começou a nascer? Foi ali já a partir da peça que você queria levar a história para o cinema?

O filme mesmo começou em 2015, o início de tudo. Já tinha de alguma maneira o cinema na peça porque eu me formei em Cinema, na verdade quando eu fiz a peça eu tinha a vontade de que fossem imagens em movimento. Naquele tempo eu era jovem, inexperiente, então a ideia de um filme não cabia, não tinha como fazer àquela altura. Depois da peça essa ideia aumentou, ficou potencializada. Deu certo a peça, as pessoas se conectaram com a história, gostaram do que a gente falou ali. Aí eu encontrei parceiros que possibilitaram essa passagem para o cinema, como os produtores da Lacuna Filmes, que fez também o “Hoje Eu Quero Voltar Sozinho”.

De 2010, da peça, para cá, tivemos muitas mudanças na sociedade, nas relações, na política. Você teve que adaptar alguma coisa ou a história é humana, logo, não se altera?

No sentido dos relacionamentos, de sociedade, tem uma alteração muito forte da tecnologia como mediadora das relações, tudo passa pelo celular hoje. Há 10 anos não era tanto assim, já era um pouco, mas não tanto. Isso realmente teve que ser adaptado, essa maneira de os jovens – porque os personagens do filme, a maioria, têm vinte e poucos anos – se relacionam através das redes sociais. Isso foi incorporado na história. Em termos de regressão de direitos, onda conservadora na política, isso não mudou. O discurso que o filme carrega é de uma sexualidade bem resolvida, tranquila, afirmativa.

Eu gostaria que ele chegasse como um abraço caloroso, porque eu acho que ele é sobre tudo isso que a gente está sentindo falta: contato humano, festa, encontro, olho no olho, beijo, suor, saliva, pele, tudo isso, bares, rua.

Ainda mais necessário com essa realidade atual.

Exatamente. Esse discurso continua o que sempre foi, ele se torna mais forte porque a realidade torna ele mais urgente.

E o que une essas histórias de amor do filme? O que une todas as histórias de amor?

As músicas e os clichês (risos). No fim das contas, toda história de amor tem uma trilha sonora. Toda história de amor, em algum momento, se você tiver um pouquinho de distanciamento ou depois que já passou, você olha para trás e fala: “que clichê que eu fui, eu fiz exatamente daquele jeito clichê”. Toda história de amor em algum momento esbara no clichê e tem uma trilha sonora, e o filme é exatamente sobre isso.

Com histórias de amor de jovens de vinte e poucos, vem a reflexão se a gente nesta idade oferece mais ou não do amor para o outro? A idade muda o amor?

Eu acho que aos vinte e poucos estamos mais abertos, mais disponíveis de várias maneiras. Estamos mais disponíveis em termos de tempo, não só de ter tempo, em termos do tempo que você devota para as coisas. Aos vinte anos você está mais disponível para as baladas, para os amigos, suas loucuras, descobertas, experimentações. Consequentemente, você está mais disponível para as relações e os afetos, portanto, os amores. Eu acho que isso ao longo dos anos a gente vai sistematizando rotinas, tendo outras preocupações e vai ficando mais fechado para o mundo externo.

Concreto é não projetar nas coisas tamanhos maiores do que elas têm, conseguir reconhecer o tamanho real, ou pelo menos o que parece real para nós, de todo esse mecanismo que envolve o amor.

Porém, mesmo assim, é um filme para todas as idades porque o amor não conta tempo no relógio.

Sim. Ao mesmo tempo, eu acho que todo mundo carrega dentro de si um coração juvenil que nunca envelhece, no sentido de que a gente com trinta, quarenta anos, depois dos trinta eu já me vi em situações de sofrimento de amor que eu falo para mim mesmo: “meu deus, de novo isso? Parece que eu tenho 17 anos!”. Aos quarenta e poucos, aos cinquenta e muitos, a gente vai continuar a ter um coração juvenil. O filme é sobre jovens, mas ele é para corações juvenis de todas as idades.

Esse clichê de morrer de amor e continuar vivendo é basicamente o combustível da existência

Neste momento de quarentena, todos dentro de casa com as relações muito mais intensas pelo convívio, como o filme chega para quem está em casa, nessa tensão, nessa preocupação?

Eu gostaria que ele chegasse como um abraço caloroso, porque eu acho que ele é sobre tudo isso que a gente está sentindo falta: contato humano, festa, encontro, olho no olho, beijo, suor, saliva, pele, tudo isso, bares, rua. Todo mundo está muito carente disso neste momento e o filme neste sentido é nostálgico porque não estamos vivendo isso no momento, mas ao mesmo tempo ele cria uma pequena projeção de futuro. Ele diz: “calma, tudo isso vai voltar”. Como se ele fosse esse abraço, dizendo que o calor humano existe.

A gente falou dos personagens de vinte e poucos, mas o elenco tem também as maravilhosas Sueli Franco e Denise Fraga. A ideia é fazer um contraponto?

As duas são o retrato dessas relações verticais. O filme é muito horizontal porque todos os personagens têm os amigos e os amores, todo mundo dessa relação que a gente pode chamar de horizontal. Mas eu queria que tivesse esse espelhamento vertical, uma geração acima ou duas gerações acima, então tem uma mãe e uma avó. E como essas gerações lidaram com o amor, com as suas frustrações, suas expectativas? Tanto é que a personagem da Denise Fraga faz exatamente o que eu falei, sem dar spoiler, mas ela chega ao fim mostrando que o coração juvenil está batendo ainda. A avó que a Sueli Franco faz não é exatamente isso, mas traz essa ideia de espelhamento em outras gerações. É difícil dizer que essas personagens resumem o pensamento da geração delas. Cada uma é uma pessoa, uma subjetividade.

Eu imagino que fazendo a peça você já tenha aprendido algo sobre relacionamentos. Mas fazendo o filme ainda teve alguma lição a aprender?

Eu não sei se dá para falar em aprender, mas ao fazer o filme eu revisitei um monte de sentimentos e um certo modo de existir que eu tinha aos vinte e poucos anos, que foi quando eu escrevi essa peça.

Porque você é uma outra pessoa hoje.

Exatamente. Nessa perspectiva de quem está olhando com uma idade que eu já não tenho mais. Tem um distanciamento. Eu acho que nesse olhar para trás, o que eu poderia contar que eu sinto de diferente em mim é que hoje eu romantizo menos os afetos do que eu fazia aos vinte e poucos. Eu acho que os personagens do filme fazem muito isso também, o filme é sobre romantizar as histórias, imaginar, viver certa ilusão do sentimento amoroso. Ou como fala no próprio filme, ser apaixonado pela ideia de estar apaixonado, pela ideia de paixão. Eu acho que hoje em dia eu sou menos apaixonado pela ideia de paixão e acho que eu consigo lidar com os afetos de uma forma um pouco mais concreta.

Concreto significa necessariamente pessimista?

Não. De forma nenhuma significa pessimista. Eu acho que concreto é concreto mesmo, é não lidar com a projeção do que gostaria, com esse incêndio romântico, os arrebatamentos. Eu vou lidar com o que é real, com o que realmente existe. É ter um pouco mais de pé no chão para essas coisas todas sem agigantar o sentimento, é isso no fim das contas. Concreto é não projetar nas coisas tamanhos maiores do que elas têm, conseguir reconhecer o tamanho real, ou pelo menos o que parece real para nós, de todo esse mecanismo que envolve o amor.

Que passa também por reconhecer padrões, construções e preconceitos, não é? Existem padrões de relacionamento que quando a gente menos espera, estamos dentro deles.

Sim. Isso também é esse concreto que a gente falou. Você entender um erro passado ou um padrão e poder lidar com isso também. Saber reconhecer um padrão é uma informação muito concreta. Porque quando você é jovem e ainda não tem tanta experiência e maturidade emocional, você não reconhece aquilo como um padrão, você reconhece aquilo como o que você está vivendo no momento, lhe parece simplesmente a sua verdade interior irrefutável. Aí passa 10 anos e você pensa que aquilo foi a sua verdade interior uma, duas, três, oito vezes… Opa, acho que temos um padrão aqui, não é? Vamos desconstruir ou não; o que ele tem de bom para mim? Entender vícios sentimentais.

O filme é sobre jovens, mas ele é para corações juvenis de todas as idades.

A arte tem esse papel de fazer a gente refletir sobre as coisas, identificar comportamentos, provocar?

Sim, é para isso que ela existe. Para mim a arte é um espelho da alma humana, é disso que se trata. Claro que arte é um nome grande, tem uma série de, digamos assim, produtos de entretenimento que não necessariamente são arte. Mas as coisas que a gente pode chamar de arte, e cada um sabe o que é arte para si, onde você puder encontrar o espelho da sua vida interior, da sua emoção, do seu intelecto, todas essas coisas ao mesmo tempo, emocional, racional, a arte é essa fonte de espelhamento mesmo. Nesse sentido você se entende muito a partir da arte, ela nos traduz. É como uma lógica de tradução literal de texto mesmo, você coloca no tradutor e pronto. De uma língua que você não conhece você passa a entender o que está escrito ali. É como se a arte fosse essa tradução das nossas entranhas. E o filme também é sobre isso, essas pessoas que vivem a sua vida emocional a partir das referências, a partir das músicas, das peças, dos textos, é isso.

Existe para você uma música para morrer de amor? Só vale citar uma.

Nossa, tem milhares (risos). Mas para escolher uma eu escolheria uma que está no filme meio como música-tema que chama “Como Dois e Dois”, que é do Caetano, mas ela ficou famosa cantada pelo Roberto Carlos e pela Gal Costa, tem as duas gravações. No filme ela aparece em uma gravação nova que a gente fez. No momento é a que eu escolho, até pelo filme, por ela estar tão em voga na minha vida no momento.

Obviamente o morrer de amor é no sentido figurado, não é um filme sobre violência. Vale a pena esse morrer de amor?

Poxa, se não for para isso, para quê a gente veio? Morrer de amor e continuar vivendo, mais um clichê, olha aí, esse clichê de morrer de amor e continuar vivendo é basicamente o combustível da existência. Quem não passou por isso está perdendo uma parte muito significativa da vida, com tudo o que ela tem de legal e com tudo o que ela tem de dolorida. E a dor na verdade também está aí para nos ensinar, para crescermos.

É como se a arte fosse essa tradução das nossas entranhas. E o filme também é sobre isso, essas pessoas que vivem a sua vida emocional a partir das referências, a partir das músicas, das peças, dos textos, é isso.

E agora depois do filme, quais são os projetos?

Eu tenho um outro filme que eu fiz e que será lançado agora na sequência, no ano que vem, chama “Meu Álbum de Amor”, que é outro filme de amor. Dessa vez é um musical mesmo, os personagens cantam em cena músicas compostas para o filme. Quem faz é o Gabriel Leoni como protagonista com músicas originais do Arnaldo Antunes e do Odair José, que são músicos de diferentes gerações que conseguimos juntar. E depois vou voltar a fazer teatro, eu estava com vários projetos de teatro antes da pandemia, aí deram uma pausa. Eu alterno entre o audiovisual e o teatro, então eu provavelmente vou voltar a fazer peças depois de ter feito três filmes na sequência.