Laia do Teatro relembra a ditadura militar para discutir governos totalitários e cerceamento da liberdade  

O passado é um enorme baú cheio de valiosas lições que não podem ser esquecidas, e a Laia do Teatro sabe disso ao anunciar o lançamento da produção “A Morte e a Donzela”, de Ariel Dorfman e com direção de Laerte Mello. A ditadura militar que castigou o Brasil em décadas passadas serve de norte para relembrar as consequências do cerceamento da liberdade das pessoas. 

Em um cenário quase distópico paramilitar vivido pelo País atualmente, a peça chega como um espelho para a sociedade se olhar e se questionar: estamos sendo cerceados? O centro é a dona de casa Paulina, sequestrada e torturada pela ditadura, e o advogado defensor dos Direitos Humanos Gerardo.  

Eles formam um casal “que, alguns anos após o fim da ditadura, ainda convive com os fantasmas da tortura, da perda, do medo. Por uma sucessão de acasos, Paulina se depara com um homem que acredita ser o mais cruel de seus torturadores dormindo em sua sala-de-estar”, explica a Laia à Ezatamag.  

A apresentação do tema pelo olhar tão íntimo deste casal acaba por promover a aproximação e a empatia entre o público e as personagens, gerando movimentação e questionamentos nos pensamentos mais consolidados.

“E as ações e reações das personagens a partir deste ponto levantam questionamentos profundos sobre a elasticidade dos limites éticos em situações extremas”, continua na entrevista a seguir.  

No elenco, Aline Pimentel, André Barreiros e Victor Barreto querendo expandir o Teatro para todes – mesmo em tempos de pandemia, quando o virtual ditou a regra. A Laia fez em 2020 no Instagram @laiadoteatro “Só os pássaros são livres” (assista aqui), utilizando a internet para fazer seu palco em tempos tão difíceis.  

Como surgiu o projeto? Os tempos exigem uma iniciativa assim? 

“A Morte e a Donzela” conta a história de Paulina, uma dona de casa que foi sequestrada e torturada durante a ditadura militar; e Gerardo, advogado proeminente e militante dos Direitos Humanos: um casal que, alguns anos após o fim da ditadura, ainda convive com os fantasmas da tortura, da perda, do medo. Por uma sucessão de acasos, Paulina se depara com um homem que acredita ser o mais cruel de seus torturadores dormindo em sua sala-de-estar, e as ações e reações das personagens a partir deste ponto levantam questionamentos profundos sobre a elasticidade dos limites éticos em situações extremas. A escolha do texto se deu pelo desejo de provocar questionamentos fundamentais sobre os regimes ditatoriais e seus efeitos no tecido social. Temas como a preservação da memória e a reparação de crimes cometidos contra a humanidade permeiam todas as sociedades que já viveram sob governos totalitários. No entanto, este debate, quando visto de uma perspectiva mais pessoal, oferece novas camadas de reflexão. Por isso, a apresentação do tema pelo olhar tão íntimo deste casal acaba por promover a aproximação e a empatia entre o público e as personagens, gerando movimentação e questionamentos nos pensamentos mais consolidados. Acreditamos que esse processo possa ser essencial para reavaliarmos o cenário político brasileiro atual e futuro. Isto porque Dorfman explora perguntas que poderiam ser feitas por qualquer povo que tenha enfrentado um período de grave cerceamento dos seus direitos: podemos esquecer o passado sem nos arriscarmos à sua repetição futura? É legítimo sacrificar a verdade para assegurar a paz? Quais as consequências para uma sociedade se as vozes do passado são suprimidas? Será possível um povo buscar justiça e igualdade se a ameaça de uma intervenção militar está sempre à sua volta? E dadas estas circunstâncias, como evitar a violência? Não há como sair ileso depois de conhecer a história de Paulina, Gerardo e Roberto. Trazê-la para o palco é, para nós, a confirmação de que não há como dissociar a existência humana, em toda a sua complexidade, da vida política. Nesse sentido, o teatro nos serve como expressão essencial dessa humanidade desnuda e como um instrumento potencialmente transformador da nossa realidade.  

Qual o objetivo de vocês? Qual a mensagem de Laia? 

A Laia acredita que o Teatro (e a arte, de maneira geral) deve ser de acesso amplo e irrestrito à toda a população, dando a quem nos assiste a possibilidade de sair do teatro levando para casa inquietações e questionamentos que conduzam à transformação. Temos como objetivo, portanto, que nossos espetáculos sejam realizados nas diversas zonas da cidade, gratuitamente ou a preços acessíveis, a fim de que realmente consigamos atingir também pessoas que usualmente não têm acesso ao teatro. Ainda, nos nossos trabalhos iniciais, temos priorizado autores e inspirações latino-americanas, percebendo que essas obras traduzem com maior proximidade os questionamentos que têm nos movimentado, e também diante do sentimento de que ainda é preciso descolonizar e valorizar a cultura latino-americana.   

“Só os pássaros são livres” foi no palco virtual

A escolha do nome, as legendas usadas na divulgação, tudo aponta para o não-convencional. É hora de discutir? Por que Laia?  

Laia – substantivo feminino. Categoria de seres ou coisas agrupados segundo determinada característica; classe, espécie, gênero, tipo. Laia é coletivo. Laia é convergência, junção.  É pertencimento. Laia é subversão em conjunto. Laia é a equalização das diferenças e a diferenciação das igualdades. Laia é casa e é movimento, é pilar e é vento, é raiz e é folha caída de Outono. Laia é a certeza de que certos encontros são tão certeiros que a gente transforma em dia-a-dia. Laia é a certeza de que já deu certo. A identidade visual do grupo e também da peça é influenciada pelo caráter intrinsecamente popular da Laia, tendo influências urbanas e de movimentos culturais brasileiros, como a Tropicália. A logomarca, por sua vez, além das inspirações já referidas, procura ainda simbolizar outras características que permeiam o grupo:  a liberdade, o despudor e a celebração da arte como instrumento de transformação social. 

Qual o papel do teatro na construção da sociedade? 

Muito influenciada pelos ensinamentos de Augusto Boal, a Laia acredita no apoio decidido do Teatro à luta dos oprimidos. A capacidade de perceber o mundo – na luta social e política – através de um Teatro falando às pessoas comuns, ganhando ruas, praças, escolas e ocupações, na tentativa de nos libertar das opressões impostas e das que criamos dentro de nós mesmos. Nas palavras de Boal “as elites consideram que o Teatro não pode nem deve ser popular. Nós pensamos, pelo contrário, que o Teatro não apenas pode ser popular, mas que todo o resto deve se tornar popular: em particular o Poder e o Estado, os alimentos, as fábricas, as praias, as universidades, a vida.”  

O Teatro nos serve como expressão essencial dessa humanidade desnuda e como um instrumento potencialmente transformador da nossa realidade.

 

Qual o maior sonho de vocês?  

Além de ampliar o acesso ao Teatro a novos espectadores, levando nosso trabalho de forma gratuita a todas as regiões da cidade,  temos como sonho futuro também dar acesso ao fazer teatral por meio da criação de um espaço de ensino e construção das artes dramáticas de excelência e que seja, também, inteiramente gratuito. Percebemos, hoje, a necessidade clara de que este acesso seja largamente ampliado, uma vez que, em geral, são raros os cursos gratuitos de Teatro disponíveis, sendo ofertadas pouquíssimas vagas e com limitações de horários que normalmente impossibilitam conciliar o curso com a jornada de trabalho habitual. Ainda, os cursos de Teatro privados são, em geral, localizados em regiões nobres da cidade, com valores absolutamente inacessíveis à maior parte da população. Assim, e diante da certeza de que o fazer teatral é uma possibilidade real para qualquer ser humano, com potencial transformador imensurável, temos também o sonho de construir esse espaço, concretizando a viabilidade de um Teatro que seja verdadeiramente popular.