Traviarcado: Eu quero acordar cada dia mais travesti, eu amo ser uma travecona, dispara Renata Carvalho 

Quando o frio do Inverno atual for embora e a Primavera chegar não há quem possa parar a mudança da qual Renata Carvalho é mensageira. “Será “LGBTQIA+, feminina, preta, periférica, gorda, deficiente e originária ou não será, mas não tem como parar a Primavera. Evoé traviarcado – onde todes os corpos são naturais”, anuncia.  

Atriz, diretora, dramaturga, transpóloga, aquariana, inquieta, criativa e combativa, Renata tem plantado suas sementes fundando o MONART (Movimento Nacional de Artistas Trans), o “Manifesto Representatividade Trans” (que visa que artistas trans interpretem personagens trans) e o Coletivo T (1º coletivo artístico formado integralmente por artistas trans em São Paulo). 

Com meus trabalhos pretendo auxiliar a travesti que está nascendo hoje, e ainda não sabe que é uma pessoa travesti.

 

Graduanda em Ciências Sociais, gosta de ser transpóloga, uma antropóloga trans, porque sabe quantas portas sua representatividade pode abrir para outras pessoas. “Quando temos um caminho traçado pela representatividade ela permite que outras também possam atravessar esse caminho, e até no caminho criar outros.” 

Renata cria caminhos sustentada pela força de ser orgulhosa de quem se tornou com apoio da arte, sempre transformadora. É onde ela se sente em casa, sendo ela mesma e de onde mostra ao mundo espetáculos como “Dentro de Mim Mora Outra” e “O evangelho segundo Jesus, Rainha do céu”. 

“O seu artista defende sua luta política? Seu artista se posiciona em momentos fundamentais da história atual?”

Ainda acha tempo de colaborar com linha toda dela das camisetas Caraxi e protagonizar o documentário “Corpo sua autobiografia”, que mostra um corpo em isolamento social e familiar. Mas o distanciamento não é provocado pelo Coronavírus, e sim por uma travesti.  

Ser travesti é a melhor parte de mim, eu tenho muito orgulho em ser travesti. Uso a palavra travesti como um adjetivo qualitativo, como uma qualidade. Eu quero acordar cada dia mais travesti, eu amo ser uma travecona”, conta na entrevista a seguir:  

Como tem ficado o trabalho do Monart e do Coletivo T nestes tempos de pandemia?  

No MONART (Movimento Nacional de Artistas Trans) estamos de maneira virtual e temos um grupo de debate e troca no Facebook para conversarmos, tirar dúvidas e pensar nos próximos passos políticos para o movimento trans, lutando pela inclusão, permanência, profissionalização e representatividade coletiva nos espaços de atuação e criação artística nas artes. O Coletivo T é um coletivo artístico de pessoas travestis e trans que busca através da arte e da educação criar produções artísticas que possam reconstruir o imaginário social com representações positivas sobre nossas vivências, pois acredito na arte como um agente transformador que possibilita abrir mentes, corações, e colocar luz em assuntos tão obscuros em nossa sociedade. Estamos no trabalho de mesa e pesquisa. Eu sou artista porque eu quero mudar o mundo, pelo menos o que eu alcançar. 

Qual você acredita ser a importância destas iniciativas nestes tempos complicados?  

No livro “Grande sertão veredas”, de Guimarães Rosa, Riobaldo diz: “Há um ponto de marca que dele não se pode mais voltar para trás”. Foi importante ter fundado esses dois movimentos para dizer que nós artistas trans e travestis existimos, e o mais importante, que queremos e temos o direito de exercitar nossas aptidões artísticas. É daqui para frente, eu sempre volto na História pois ela é cíclica, nenhum movimento de mudança aconteceu em um mês ou em um ano, é um processo. E esta mudança é tão linda, tão ampla, tão plural, tão diversa que algumas pessoas estão com medo. Porque toda mudança requer um luto, e nós ainda não lidamos bem com o luto. Mas eles – mesmo usando todas as suas forças e fake news – não vão barrar a mudança, porque o tamanho dela é gigantesca. E vem de todos os lados: Travestigêneres, negros, povos originários, corpos com deficiência, positivos, periféricos, gordos….. Bem vindes ao Traviarcado. 

As pessoas podem ajudar o trabalho de vocês? Como?   

As pessoas podem auxiliar na nossa permanência e profissionalização, consumindo conteúdo de pessoas trans/travestis e suas produções artísticas, nos seguindo nas redes sociais. Quantas travestis você segue nas redes? Nós todes corpos dissidentes e subordinados nas artes precisamos nos repensar nos artistas que consumimos e seguimos. O seu artista defende sua luta política? Seu artista se posiciona em momentos fundamentais da história atual? Pois não se posicionar é um posicionamento. Quem fica em cima do muro, sempre está do lado que quem ganha. Siga as travestis, as pessoas negras, gordas, com deficiência, positivas, originários…. Isso amplia seu entendimento sobre o mundo e outras vivências diferentes das suas, alargando nossa humanidade. 

Você acha que inspira mais gente com seu exemplo como atriz, diretora, dramaturga e pessoa? Qual a sua responsabilidade?   

Minha responsabilidade está nas minhas produções artísticas e na minha pesquisa enquanto transpóloga. Faço meu trabalho com responsabilidade e respeito, com meus trabalhos pretendo auxiliar a travesti que está nascendo hoje, e ainda não sabe que é uma pessoa travesti. Trabalho para que o mundo seja menos duro para as que vêm. Também entendo ser uma representatividade positiva para as minhas, pois estou na arte há 25 anos de maneira continuada, o que é muito difícil, não conheço outra. Eu espero e trabalho para que outras travestis e pessoas trans ao me verem dizerem mentalmente: “É possível, eu também posso estar lá”. Quando temos um caminho traçado pela representatividade ela permite que outras também possam atravessar esse caminho, e até no caminho criar outros. E esse é o poder da representatividade, pois ela faz que corpos cisgêneros convivam com corpos trans, e o convívio traz a nítida percepção da igualdade, desmistificando e desfolclorizando nossas identidades, vivências e corpos. 

“Trabalho para que o mundo seja menos duro para as que vêm.”

Você enfrentou ou ainda enfrenta muitos obstáculos na sua trajetória pessoal por ser trans?   

Vivemos em uma sociedade estruturalmente transfóbica, então, ser uma travesti no Brasil é estar constantemente passando por situações transfóbicas, o que vai limando nossa saúde mental. Fui expulsa de casa, caí na prostituição compulsória e fui excluída de muitos lugares e convívios. Mas foi na arte onde encontrei a palavra amor, e ele me disse: “Aqui você pode ser você”, foi o meu maior encontro. O teatro é o lugar mais democrático que eu conheço, pena que os artistas cishetronormativos não saibam disso. Foi difícil permanecer na arte, tive que ser muitas coisas: atriz, diretora, produtora, maquiadora, professora, dramaturga e até me tornei transpóloga, e o que posso afirmar é que a arte não te abandona. O teatro e a educação me salvam todos os dias. Evoé. 

O que você pode dizer para quem está começando a trilhar este caminho em busca de si?   

Ser travesti é a melhor parte de mim, eu tenho muito orgulho em ser travesti. Uso a palavra travesti como um adjetivo qualitativo, como uma qualidade. Ser travesti me tornou uma pessoa mais humana. Não há nada mais lindo, puro e libertador do que ser você mesmo. Eu quero acordar cada dia mais travesti, eu amo ser uma travecona. 

Ser travesti me tornou uma pessoa mais humana.

Você acredita que um novo mundo vem se desenhando para o pós-pandemia? Qual o papel dos LGBT nele?  Quais os planos? 

No espetáculo “O evangelho segundo Jesus, Rainha do céu” a Rainha Jesus diz: “A mudança há de acontecer de qualquer maneira”, e eu acrescento, a mudança já está acontecendo, mas ela é lenta e gradual. Em tempos sombrios (como o que estamos vivendo) faz parecer que estamos regredindo, mas não estamos. Temos o maior número de pessoas trans e travestis eleitas para cargos legislativos. Erika Hilton travesti e negra foi a mulher mais bem votada do Brasil. Temos Erica Malunguinho e Robeyoncé Lima como deputadas estaduais. Cantoras estourando nacionalmente: Liniker, As Baias, Linn da Quebrada, Pepita, Ventura Profana, Danna Lisboa, Alice Guel, Marina Mathey entre tantas outras. E essa mudança é LGBTQIA+, feminina, preta, periférica, gorda, deficiente e originária ou não será, mas não tem como parar a Primavera. Evoé traviarcado – onde todes os corpos são naturais.