Série apresenta Warhol para a nova geração e reafirma sua importância como um dos maiores de todos os tempos
Por Eduardo de Assumpção*
Em 1968, após levar um tiro da anarcofeminista Valerie Solanas, o pai da POP Art e artista multifacetado Andy Warhol sobreviveu milagrosamente e começou a escrever um diário. Publicado em 1989, após sua morte, o livro, editado por Pat Hackett revelou muito mais do que o efeminado excêntrico por trás da peruca.
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A série documental, escrita por Andrew Rossi, e produzida por Ryan Murphy, para a Netflix, vai ainda mais a fundo e analisa as entrelinhas. A atração é inteligentemente narrada pela voz de Andy Warhol, recriada por meio de inteligência artificial.
A narrativa não linear permite que a obra passeie por diferentes períodos de sua vida e como isso refletia em sua obra. O riquíssimo acervo de imagens, acompanhando a narração, mostra as perturbações, as motivações, as inquietudes e os prazeres de um dos maiores artistas de todos os tempos.
Apresentando o impacto de Andy Warhol na cultura POP, a série mostra como ela foi precursor em propagar a homossexualidade no cenário underground, tanto em seus filmes, quanto em obras mais explícitas, realizadas, entre outros, junto de Victor Hugo, o toyboy de Halston.
Mas para além de Nova York, a série retorna até Pittsburg, onde o jovem Warhol era uma pessoa completamente deslocada e, em 1949, com uma nota de $20 foi à Big Apple, criou a lendária Factory, seu estúdio e reduto de marginalizados e iniciou o seu legado. Um artista que ansiava pela aceitação do mainstream, mas cuja arte era baseada em ficar de fora para vê-la claramente; um deus da arte cuja obsessão com as superfícies das celebridades o colocavam em constante risco de ser classificado como superficial.
Warhol se declarava assexual, mas o diário revela duas de suas paixões arrebatadoras. A série acessa seu coração e dedica bastante tempo, primeiro com Jed Johnson, um jovem que veio em busca de sonhos em East Village e após Jon Gould, um executivo da Paramount, com quem manteve um duradouro caso.
Por falar em Paramount, há belíssimos momentos com cenas de filmes, um deles é com Warhol refletindo sobre Joan Crawford, Faye Dunaway e “Mamãezinha Querida” (1981) e o outro é quando ele narra uma linda sequência de “A História sem Fim” (1984).
Apresentando o impacto de Andy Warhol na cultura POP, a série mostra como ela foi precursor em propagar a homossexualidade no cenário underground.
O que não falta em “Os Diários de Andy Warhol” é arte. Podemos acompanhar toda sua evolução artística, desde quando começou como ilustrador de moda, passando pelo clássico rótulo de Sopas Cambell, a icônica sequência de Marylins, e séries e mais séries de obras que nos transportam diretamente para o Andy Warhol Museum.
A parceria de sucesso e conturbada com Jean-Michel Basquiat também é bastante ressaltada. Warhol viu no jovem grafiteiro um talento nato, e em 2 anos eles produziram, juntos, mais de 200 obras. Se Andy manipulava não é esclarecido, mas ver a apreciação de sua arte conjunta é emocionante, reforçada por imagens que evocam sonhadoramente um século que parece inescapavelmente mais decadente, glamoroso e maduro do que o nosso.
Com uma capacidade imensa de se reinventar, o artista profetizou que no futuro todos teriam seus 15 minutos de fama. O próprio foi um dos pais da MTV, ele tinha um programa de TV , fez participações em The Saturday Night, The Love Boat e estava sempre com uma câmera na mão. Andy Warhol era uma das pessoas mais famosas do mundo e sabia fazer o uso disso como ninguém.
Além da música de abertura, “Nature Boy”, com Nat King Cole, a trilha ainda traz Bee Gees, Chic, Yazoo, Robbie Dupree, The Extremes, The Pointer Sisters, Maria Callas, JMJ, General Public, Hercules and Love Affair…
A ideia de fazer da série um documental é brilhante. Andy Warhol por si só era uma obra de arte. Não há melhor intérprete para o artista do que o próprio e há acervo de imagens suficientes para isso. Cada episódio é muito bem ilustrado, dando uma aula de arte e cultura POP.
Studio 54, Mick Jagger, Diana Ross, Liza Minnelli, Madonna, Gianni Versace, todos aparecem. Mas os depoimentos de Bob Colacello, editor da revista de Warhol, a “Interview”, Pat Hackett, Glen Ligon, Jessica Beck, David LaChapelle, o cineasta John Waters, Rob Lowe, Vincent Freemont, Mariel Hemingway, Paige Powell, e muitos outros, enriquecem ainda mais a produção.
Nos anos 1980, a sombra da Aids pairou sobre Nova York, e o mundo, e o que era iluminado, escureceu e Andy Warhol vivia com medo e perdendo pessoas queridas à sua volta. Com Gould sendo derrotado pela Aids, Warhol investe sua arte penosamente na calamidade, e não no voyeur desinteressado sugerido por sua fachada pública. O último episódio esclarece o manifesto por trás de suas obras finais.
Ele afirmava que queria ser uma máquina, que não queria ter sentimentos, mas o que essa preciosidade da Netflix nos mostra é exatamente o oposto. Um gênio frágil, delicado e sensível. A produção apresenta o legado artístico de Andy Warhol para uma nova geração e reafirma sua importância como um dos maiores vanguardistas e ícones POP de todos os tempos.
*Eduardo de Assumpção é jornalista e responsável pelo blog cinematografiaqueer.blogspot.com
Instagram: @cinematografiaqueer
Twitter: @eduardoirib