É temerário passar qualquer Mês do Orgulho LGBT+ sem celebrar o ícone Claudia Wonder
Depois que o inigualável Caio Fernando Abreu publicou o texto “Meu Amigo Claudia”, sobre Claudia Wonder (São Paulo, 15 de fevereiro de 1955 — São Paulo, 26 de novembro de 2010), ficou praticamente impossível escrever sobre ela sem medo – e sem pedir licença ao mestre Caio. Mas é preciso falar sobre Claudia Wonder, é preciso lembrar dela, consumir sua obra, celebrar seu legado e não deixar que essa história se apague, como quase aconteceu com seu acervo.
Leia também:
Parada de São Paulo faz edição presencial após dois anos de pandemia e trevas
É urgente a celebração de um dos maiores ícones LGBT+ brasileiros de todos os tempos – inclusive do futuro. Claudia sempre estará na linha do tempo da nossa História, será sempre a responsável pelas memórias de um público que viu uma travesti mergulhada em uma banheira de sangue (falso, calma) em pleno auge da epidemia de HIV nos anos 80.
Foi ela quem abriu tantas portas importantes e amaciou a estrada que várias outras trilham hoje. Claudia era uma travesti que furava o forte machismo do mundo do sexo gay e podia entrar na sauna mais famosa de São Paulo, por exemplo. Não somente podia entrar, ela era convidada a estar lá em eventos como o desfile da grife desse ainda hoje famoso espaço.
Era convidada por ser respeitada, por ser capaz, por ser profissional competente o bastante para assumir um cargo no serviço público, sempre elogiada. Foi uma das pioneiras a ocupar esse tipo de espaço em todo o Brasil ainda no começo do século, um tempo onde ainda lutávamos pela união civil e consequente casamento civil.
Era enquanto a LGBTfobia não era considerada crime que Claudia circulava com um corpo visivelmente político, travesti orgulhosa, didática, com um sorriso doce e acolhedor misturado com o tom de certeza na voz. Ensinou-me uma vez: “travesti não é homem nem mulher, travesti é travesti”. Foi o começo de uma caminhada de conhecimento sobre identidades, História e respeito.
É temerário passar qualquer Mês do Orgulho LGBT+ no Brasil sem falar de Claudia Wonder, do que ela trouxe de contribuição para o nosso movimento, para a construção da nossa identidade enquanto grupo organizado, de nós enquanto brasileiros. Porque uma coisa importantíssima que ela sempre fará é justamente ser brasileira.
Era em um Brasil que copiava, e ainda o faz, a militância estado-unidense que ela cantava em Português, buscava parcerias nacionais, como a derradeira de sua carreira, com os Laptop Boys. “Funky Disco Fashion” (2007) foi um álbum de despedida em grande estilo, sem manipulação digital, com coragem de soltar uma voz grave, marcante, cortante, importante.
Um triste dia nos chega a notícia: Claudia estava internada com um problema no pulmão. Torcemos muito para ela se recuperar. Mas não foi o bastante. Infelizmente sua partida expôs uma falha que ainda precisa ser consertada em nosso movimento: a falta de compromisso com a própria memória. Todo o acervo de Claudia quase foi jogado fora.
A consultoria paulistana Diversa, dos conhecidos ativistas Franco Reinaudo, Cássio Rodrigo e Fê Maidel, fez o que estava ao seu alcance e salvou o que conseguiu do material. Outra fonte importante, audiovisual, é o documentário “Meu Amigo Claudia”, de Dácio Pinheiro.
Claudia morreu aos 55 anos, em um novembro quente em São Paulo, e foi velada no prédio da Secretaria de Justiça e Defesa da Cidadania do Estado, no centro da cidade, em uma noite de tristeza que reuniu muitas das figuras de maior respeito dentro da nossa comunidade.
É esse respeito, são essas figuras, é esta memória que precisam sustentar o nosso orgulho, neste e em todos os meses. Felizmente Claudia ganhou musical em sua homenagem, prêmio de direitos humanos e batiza um centro de cidadania na Zona Norte de São Paulo. Precisamos nos lembrar sempre: somos históricos, eternos.