Um relato de quem mora há mais de três anos ao lado da Cracolândia e consegue enxergar além da (falta de) roupa de grife

Eu moro ao lado da Cracolândia de São Paulo, a maior do Brasil. E quando eu digo ao lado eu quero dizer a uma quadra do que se chama de fluxo, aquela aglomeração de dependentes químicos que o helicóptero da televisão adora mostrar. E já faz três anos que eu moro aqui. Já faz três anos que o cotidiano da Cracolândia é em parte o meu cotidiano.

Porque este tipo de problema não é só de alguém, é de todes nós. A Cracolândia resume o “morar na rua”, o “não ter perspectiva alguma” e o “não consigo voltar para a minha casa”. Escrevo isso porque o assunto de hoje é um comentário de uma abastada dupla de loiras sobre pessoas em situação de rua que vem circulando em certo vídeo (que não merece ser nomeado ou reproduzido).

Nestes três anos como vizinho desse pessoal eu pude ter ainda mais certeza sobre algumas coisas que eu acreditava. Ninguém quer morar na rua. Ninguém quer passar o dia feito zumbi com um cachimbo improvisado na mão. Ninguém quer comer resto – e um dia eu vi, em frente à minha casa, um homem sem uma das mãos e com a outra tentando achar o que comer. Ajudei, quase em prantos.

A violência que a classe média computa à Cracolândia nunca foi sentida por mim. Exceto um assalto no fim do ano passado, pertinho de casa, 4 da tarde, voltando do trabalho. Aí os preconceituosos vão disparar: “viu, tudo vagabundo, ladrão, nóia, tem que matar porque rouba nós, pessoas de bem” (affffff).

A violência que a classe média computa à Cracolândia nunca foi sentida por mim.

Nada disso, eu fui assaltado por dois homens que não estavam sob efeito de substância alguma. Pelo contrário, estavam lúcidos e conscientes o bastante para me abordar com calma, mostrar o revólver e levar minha mochila. Com sinapse suficiente para preterir uma moça com criança e me escolherem para assaltar.

Em mais de três anos, NUNCA fui abordado violentamente pelos dependentes químicos – que chegam para pedir 1 Real, um cigarro, uma bolacha, um sabonete, qualquer coisa. Para quem não tem nada…

Então me revolta quando falam sobre a realidade das pessoas em situação de rua sem conhecer essa situação. E antes que alguém questione e me acuse de colocar toda pessoa em situação de rua como dependente químico, aqui vai uma informação: a Cracolândia e seu entorno não têm apenas usuários de drogas. Pessoas que não têm onde morar e não são usuárias “aproveitam” (bem entre aspas, ok?) essa tolerância da vizinhança para “morarem” (entre aspas meeesmo) aqui.

São pessoas que perderam emprego e não conseguiram outro porque o mercado de trabalho não é tão simples assim. Gente de outros Estados que veio para São Paulo em busca da realização de um sonho, gente que veio trabalhar para mandar dinheiro para a família que está longe. Gente que foi presa, cumpriu a pena, ficou quite com a Justiça, mas é jogada na rua, aí sim sem aspas, literalmente, porque já teve uma condenação.

Em mais de três anos, NUNCA fui abordado violentamente pelos dependentes químicos.

E eu sei de todos esses exemplos porque eles são reais. Jornalista, curioso, amante do humano, eu não apenas dou esse 1 Real ou cigarro que eles pedem, eu converso. E todas as vezes que eu paro para conversar essas pessoas se assustam. Elas em um primeiro momento chegam a não entender o que está acontecendo. Porque já faz tanto tempo que elas não são tratadas como gente que por ora se esqueceram de como DEVEM ser tratadas.

Em um Natal, muito cristão (não confunda com quem lê a Bíblia para discriminar), eu doei duas sacolas enormes de roupas para o Edson, lembro do nome até hoje. O Edson estava preso após um assalto que, obviamente, não deu certo. Cumpriu a pena e fica aqui pela vizinhança porque é “mais aceito”. Levei para ele comida, uma manta e uma boa conversa.

Edson se separou da esposa, trabalhava no serviço funerário do município de São Paulo. Mas cometeu um erro. Pagou conforme a Justiça, a única que pode julgar, achou que ele deveria pagar. Hoje, ainda o vejo por aqui e nos cumprimentamos, hoje ele tenta viver de reciclagem. Não usa crack, mas tem problemas com álcool. Educado. Respeitoso. Mais decente do que muita gente vestida de Halston que eu já vi por aí.

Muitas e muitas vezes eu e meus vizinhos estamos chegando em casa e tem alguém na porta do prédio. Um dia foi lindo porque enquanto eu estava indo para casa buscar comida para uma dessas pessoas, o meu vizinho, também gay, já estava descendo com um super mega blaster sanduíche para o moço que estava na porta.

E todas as vezes que eu paro para conversar essas pessoas se assustam. Elas em um primeiro momento chegam a não entender o que está acontecendo. Porque já faz tanto tempo que elas não são tratadas como gente que por ora se esqueceram de como DEVEM ser tratadas.

Não, nem de longe é o ideal. Certo mesmo seria essas pessoas terem oportunidades para não precisarem pedir comida. Ou ração, porque tem um rapaz, também gay, que “mora” (que horrível escrever que ele mora, ele não mora na rua!) aqui na minha quadra e tem dois cachorros. Ele pede, mas pede ração para os bichinhos – que cuidam dele ferozmente e não deixam ninguém chegar perto quando ele está dormindo.

São vidas. São rostos. São sonhos. São sentimentos. São pessoas. É um problema complexo, que envolve diversas áreas como saúde, psicologia e geração de renda e exige boa vontade. Exige que tire-se dos olhos bem maquiados por produtos caríssimos essa venda higienista. Exige que as pessoas em situação de rua sejam tratadas como pessoas, o que para mim é óbvio, mas infelizmente não o real.

É horrível viver da caridade de quem nos detesta.