Cuiabano André D’Lucca dá vida à Almê para encher os palcos – e sua própria vida – com muito humor

O enredo da peça da vida do ator cuiabano André D’Lucca é recheado de humanidades. Um “homem experiente” de 43 anos que já viveu momentos bons e ruins, mas nunca perdeu a esperança de que dias melhores sempre existem. Fome, preconceito, ameaças e a luta diária de quem vive da Arte no Brasil, ou tenta viver dela, embalam essa história, que se depender do otimismo dele terá um final para lá de feliz.

Feliz, alegre, divertido. Como a maravilhosa Almê, a Almerinda, personagem de André que usa do humor de forma inteligente para fazer crítica política. Uma mulher que já foi casada com oito deputados e não segura sua língua – entrega todos os podres de seus ex. O ator conta que algumas pessoas não entenderam a diferença entre ficção e realidade e já sofreu ameaças por causa da personagem.

“Até tiro na porta da minha mãe já deram e muitas ameaças. Já perdi muitos trabalhos aqui e já fui massacrado por alguns políticos, inclusive por processos judiciais. Cadê eles hoje? Alguns presos, outros de tornozeleira e eu aqui de boa fazendo meu trabalho”, lembra.

Um pisciano que carrega “toda a problemática do meu signo: vivo no mundo da lua e me apaixono até pelo vento que bate na minha cara”. Depois de uma fase complicada de depressão no ano passado, André se diz forte para enfrentar o isolamento que estamos vivendo – e não vê a hora de ele acabar para voltar aos palcos, às fotos e aos aplausos.

O caminho é longo, mas somente ensinando as pessoas a amarem umas às outras que essa mudança vai acontecer.

É de uma das cidades com fama de mais quente em todo o Brasil que ele bateu um papo refrescante com a Ezatamag:

Você mora em Cuiabá, como é a tolerância com os LGBT por aí?

Sou cuiabano de tchapa e cruz. Nascido e criado aqui. Morei muito tempo fora: Rio, Sampa, Portugal… Há 10 anos retornei para Cuiabá. Uma das cidades mais quentes do Brasil. Eu amo minha terra, mas temos muito a melhorar. Cuiabá é considerada, proporcionalmente, uma das capitais que mais mata transexuais no mundo. Quase 70% dos eleitores daqui votaram no Impronunciável. Algumas pessoas são bastante intolerantes. O que nos dá mais força para realizarmos nosso trabalho aqui. A transfobia é um tema recorrente nos meus trabalhos. Montei uma peça chamada “Escola de Bonecas” onde a maioria do elenco era trans. Foi um sucesso. A primeira sessão foi emocionante. Mais da metade do teatro de 500 lugares era de travestis. Elas riram e choraram vendo a história delas retratada em cena por elas mesmas. O caminho é longo, mas somente ensinando as pessoas a amarem umas às outras que essa mudança vai acontecer. Jesus ousou falar isso há mais de 2 mil anos e olha o que fizeram com ele. Não sei se melhoramos muito de lá para cá.

A transfobia é um tema recorrente nos meus trabalhos. Montei uma peça chamada “Escola de Bonecas” onde a maioria do elenco era trans. Foi um sucesso.

Há quanto tempo você começou a perceber que amava atuar?

Desde criança eu amava imitar. Atendia o telefone imitando a voz do meu pai ou da minha mãe. Gostava de contar histórias e dizia que queria entrar na TV e trabalhar com os artistas. Fui criado para ser médico. Minha mãe não aceitava outra opção. Imagine o desespero dela quando aos 14 anos eu avisei que queria ser ator. Aos berros ela gritava: ATOR É TUDO VEADO, MACONHEIRO E BOCA SUJA… kkkkkkkkkk… ela tinha razão. Mães sabem das coisas.

Como foi a construção da Almê? Quais os maiores desafios que você enfrentou?

Almê nasce em Cuiabá em 2000. Na peça “Antes só que só acompanhado”, meu primeiro texto. Ela era uma vizinha pobre e sempre que entrava em cena a plateia ia abaixo. Então decidi que ela merecia uma peça só para ela, porém, ela seria rica nessa nova montagem. Nascia “Os segredos de Almerinda” para ficar dois fins de semana em cartaz. Nunca mais parei. Ela existe há 20 anos. Em 2003 houve uma nova montagem sob a direção de Ingrid Guimarães e Heloísa Perissé e foi um sucesso. O maior desafio nesse tempo todo foi o preconceito e as perseguições políticas. No começo ninguém entendia que era um personagem, achavam que eu era assim. Depois veio a questão política. A personagem faz denúncias. Almê já foi casada com oito políticos famosos da região, inclusive tem uma filha com um deputado federal. Ela sabe de muita coisa e abre o bico. Até tiro na porta da minha mãe já deram e muitas ameaças. Já perdi muitos trabalhos aqui e já fui massacrado por alguns políticos, inclusive por processos judiciais. Cadê eles hoje? Alguns presos, outros de tornozeleira e eu aqui de boa fazendo meu trabalho.

O maior desafio nesse tempo todo foi o preconceito e as perseguições políticas.

Como superar os obstáculos que podem surgir nessa busca?

Só há um caminho: PERSISTÊNCIA. Não dá para desistir no primeiro não, no primeiro insulto, nas primeiras dificuldades. Os obstáculos inevitavelmente vão surgir. O que nos diferencia é como lidamos com eles. Às vezes eu salto o obstáculo, às vezes dou a volta, às vezes explodo ele, mas ficar parado jamais. Work Bitch, Work…

Você acha que bons exemplos podem inspirar outras pessoas a serem mais felizes?

Com certeza absoluta. Bons exemplos nos inspiram. Me lembro que há uns 15 anos eu perdi tudo. Estava morando em São Paulo. Passei fome por seis meses. Emagreci 20 quilos por falta de alimentação, mas não queria voltar para Cuiabá. Queria cumprir minha temporada até o fim. Minha intuição dizia que havia algo para mim lá. Na época li a biografia da Madonna. Ela já passou fome e comeu lixo no início na carreira. Aquilo me deu forças para seguir. Logo em seguida conheci minha ex-mulher e tivemos uma filha linda. Luísa foi o presente e a recompensa desse momento difícil.

Até tiro na porta da minha mãe já deram e muitas ameaças. Já perdi muitos trabalhos aqui e já fui massacrado por alguns políticos, inclusive por processos judiciais.

Como tem sido esse período de isolamento para você? O que você tem feito para manter a saúde mental?

Estou há mais de 50 dias isolado. Eu amo ficar em casa, mas por opção, não obrigado. Ano passado tive uma crise de depressão severa. Perdi completamente a vontade de viver. Eu só conseguia enxergar as coisas ruins e me sentia deslocado daqui. Longe da minha filha tudo ficou sem cor. Parei de comer e beber água. Tive desnutrição e desidratação extrema. Meus órgãos começaram a parar. Entrei em coma. Foram 3 meses de cama. Tive que reaprender a andar, a comer sozinho… eu renasci e a vida ganhou outro sentido. Não está sendo fácil passar por isso, mas sinto que tive um estágio no ano passado, então me sinto melhor preparado para esse isolamento.

O que vem de novidades aí na carreira artística depois da pandemia?

Estou louco para reabrir a minha escola de teatro. Aqui sempre tem novidades. Geralmente estreio 3 peças por mês com minha equipe e alunos. Almerinda completou 20 anos e só fiz uma sessão lotadíssima. No dia seguinte veio o decreto e começou o isolamento. Quero muito fazer uma turnê desse espetáculo. Estou ansioso para a estreia de uma minissérie que gravei para HBO, “O Hóspede Americano”, sem data prevista. Quero muito retornar meus projetos sociais, principalmente os palhaços nos hospitais. Quero muito fazer uma nova sessão de fotos com Fabio Motta (um dos meus melhores amigos). Sou um dos modelos dele aqui em Cuiabá. Fabio me ensinou através das fotos dele a amar meu corpo. Quero muito retomar as gravações da Escolinha da Almê, meu quadro na TVCA filial da Globo aqui em Mato Grosso.

Algo tem que acontecer para subirmos nosso padrão vibracional e sermos melhores uns com os outros.

Você já está milionária com tantos comerciais que você faz? É um sucesso né.

Almerinda faz centenas de comerciais. Ela não está rica, está milionária. Eu André ainda não, mas estou no caminho. Me aguardem.

Ainda temos muito a fazer para conquistar uma sociedade mais tolerante?

Costumo dizer que a esperança é a última que morre, mas MORRE. E minha esperança numa sociedade melhor só vai morrer quando eu partir. Eu acredito sim que podemos ser mais tolerantes. Quem sabe um asteroide, uns óvnis ou um vírus. Algo tem que acontecer para subirmos nosso padrão vibracional e sermos melhores uns com os outros.

Ano passado tive uma crise de depressão severa. Perdi completamente a vontade de viver. Eu só conseguia enxergar as coisas ruins e me sentia deslocado daqui. Longe da minha filha tudo ficou sem cor.

Qual seu sonho?

Que não falte comida nem respeito para cada ser humano. Eu sei como dói a fome e a intolerância. Queria muito ver esse momento chegar.

Instagram @atorandredlucca