Rodrigo Abreu aposta na união de arte e fé para gerar onda de inclusão e mais empatia em um mundo confuso e opressor
O carioca Rodrigo Abreu é diretor de arte, educador, performer e ativista e desde muito pequeno se viu em meio a um mundo sensível de simpatias, giras de umbanda, missas, crenças. Hoje aos 36 anos, mora há quatro em São Paulo e atualmente coordena o Núcleo de Direção de Arte do Instituto Criar – de cinema, TV e novas mídias “formando jovens das quebradas de São Paulo”.
Um escorpiano que usa toda a sua paixão pela vida para gerar uma vida melhor para todes. Sabedor de que a religião nem sempre liberta, de que a crença nem sempre sustenta, tem feito um trabalho de unir arte e fé para quebrar padrões dentro desses dois campos. O objetivo é que menos pessoas sejam marginalizadas por religiões e processos criativos e que muito mais gente entenda a importância de estar dentro desses espaços criadores.
“A fé é um alicerce fundamental para mim. Há nela um pilar necessário para me manter de pé. Não falo aqui da fé religiosa, mas da força de acreditar. Acreditar em algo maior ou em você mesma, no mundo, na vida. Uma fé que não aliena ou romantiza, mas que é política, que desperta consciência, que nos compromete responsavelmente conosco e com o mundo”, conta para a Ezatamag a seguir:
Como você enxerga a realidade para os LGBT na sua cidade?
Para falar em comunidade LGBTIA+ hoje, aqui na cidade São Paulo, acho importante levar em consideração a complexidade deste grupo de pessoas. Porque há as manas que estão fazendo pista na rua e há as bichas chão de taco. Tem as LGBTIA+ mais velhas, tem as que estão muito precarizadas, tem as tantas em situação de rua, tem as que estão na Craco, tem as hypadas, tem as novinhas, tem as alienadas, tem as discretas que vão para trabalhar, tem as manas que vêm das quebradas, tem as baladeiras, tem as artistas, tem as gordas, tem as ursas, tem as padrão, tem as brancas, tem as pretas, tem as indígenas, tem as asiáticas, tem toda uma complexidade de corpas e vivências. São Paulo é um território que nós LGBTIA+ temos ocupado e dentro desta ocupação há pessoas com muito acesso a viver aqui com dignidade e tantas outras que seguem privadas do básico. Assim, levando em consideração nossas diferenças e acessos, vejo que precisamos seguir nos fortalecendo internamente para nos mantermos de pé em nossa luta pelo direito à vida. Desejo que tenhamos saúde integral e consciência de nossas diferenças para que possamos resistir juntes em diversidade e aliança efetiva. Que sejamos estratégicas para hackear a hegemonia patriarcal, colonizadora e cisheteronormativa, fazendo valer nossas narrativas e cultura. Que lutemos para não retroceder nas conquistas que tivemos até agora. E que possamos avançar na garantia de direitos básicos como moradia, alimentação, trabalho, atendimento médico, amor, espiritualidade, respeito! E por fim, que nossa força se firme em memória das muitas que se foram e pelas muitas que virão.
Desejo que tenhamos saúde integral e consciência de nossas diferenças para que possamos resistir juntes em diversidade e aliança efetiva. Que sejamos estratégicas para hackear a hegemonia patriarcal, colonizadora e cisheteronormativa.
Como você tem mantido a sanidade nestes tempos desafiadores?
A fé é um alicerce fundamental para mim. Há nela um pilar necessário para me manter de pé. Não falo aqui da fé religiosa, mas da força de acreditar. Acreditar em algo maior ou em você mesma, no mundo, na vida. Uma fé que não aliena ou romantiza, mas que é política, que desperta consciência, que nos compromete responsavelmente conosco e com o mundo. Pratico essa fé como um exercício cotidiano, meditando, lavando louça, dando aula, trocando com amigues, escrevendo esse texto, me alimentando, estudando e também rezando do meu jeito. A fé na transformação me dá forças para avançar trabalhando pelo que acredito. Em tempo de pandemia, compartilho alguns dos processos de aprendizado que têm sido importantes para manter o eixo.: 1. aceitar a imprevisibilidade e impermanência das coisas e dos planos (difícil, mas 2020 tem me trazido bastante esse desafio) | 2. respeitar os processos que me atravessam, acolhendo com calma, tranquilidade e respeito minhas dificuldades e falhas, para de fato conseguir transmutá-las | 3. respeitar a mim e as outras pessoas com sua luz e sua sombra, ainda que isso signifique estar longe em alguns casos. Resumindo, há dias de luta e dias de glória, mas sigo andando com fé, acreditando e trabalhando por tempos melhores. | 4. ter o compromisso de criar espaços de conexão com o sagrado, com o divino, consigo mesmo, entender sua forma de rezar para fortalecer as energias físicas e espirituais.
Quando você começou a sentir que a arte estava dentro de você? Como foi esse processo?
Acredito que a arte está dentro de todes. Quando criamos, quando imaginamos, quando inventamos, quando ritualizamos, quando nos emocionamos, quando observamos a nós mesmes e aos mundos a nossa volta. Tudo isso para mim são exercícios necessários para o equilíbrio de nossa humanidade. A arte como prática formativa, a meu ver, precisa ser um direito garantido a todes, em casa e nas escolas. Arte deve ser um direito sem distinção. Meu trabalho como arte educador é justamente promover a expressão artística como processo de revolução individual e coletiva. Por acreditar que a arte (criação, imaginação, expressão, ritos) é um elemento fundante da noção de humanidade, eu não posso dizer que nasci artista ou a arte nasceu em mim, pois não sei quem nasceu primeiro, se o ovo ou a galinha. Sem brincadeira, o que posso responder é que eu me fiz, me faço artista a cada dia. Sou um artista de múltiplos interesses e fazeres, se hoje posso fazer essa afirmação é porque tive acesso a estudar teatro na pré-adolescência em um escola pública, Visconde de Cairú, na zona norte do Rio de Janeiro. Depois me formei técnico em Artes Cênicas na Escola Martins Pena, no centro do RJ, a escola pública de teatro mais antiga da América Latina e sou a única pessoa formada em uma universidade pública de toda a minha família. Sou orgulhosamente bacharel em Artes Cênicas pela Unirio. Hoje sou um ativista das artes, pois me comprometo com estudo, dedicação, responsabilidade social e resistência com este fazer que realizo profissionalmente há quase 20 anos. Nosso país é riquíssimo em diversidade cultural e artística, mas o investimento para esse fazer é absurdamente precarizado. Porque em um país que doutrina pessoas para a ignorância, a arte é sem dúvida uma arma muito poderosa e perigosa “contra o sistema”, assim como a educação. Por isso mesmo, descolonizar o acesso a ela me parece uma estratégia de base necessária para avançarmos socialmente. Assim, meu processo como artista tem sido atualmente e sempre alinhar a arte que me sustenta financeiramente com a arte que eu desejo ser e promover no mundo. Nunca trabalhei com outra coisa que não arte. Já passei muitos perrengues por conta desta escolha, mas sem dúvida seguirei por essas trilhas artísticas como estratégia de sobrevivência e de resistência.
A arte como prática formativa, a meu ver, precisa ser um direito garantido a todes, em casa e nas escolas. Arte deve ser um direito sem distinção. Meu trabalho como arte educador é justamente promover a expressão artística como processo de revolução individual e coletiva.
Qual você acredita ser o papel dos artistas no mundo hoje em dia com relação à população LGBT?
A arte é um território de existência e resistência de muitas de nós, pessoas LGBTIA+, a arte faz parte de nossa história. Muito do que se entende por Arte hoje foi construído pelas mãos, talentos e emoções de nossa comunidade ao longo da história da humanidade. Mas quando olhamos para os números de inserção profissional e mesmo de condições de sobrevivência financeira dentro desta profissão, ainda somos marginalizadas e excluídas dos espaços artísticos, somos desvalorizadas financeiramente, somos desprezadas tecnicamente e somos fetichizadas e estigmatizadas por pessoas de fora da comunidade que se sentem autorizadas a falar por nós. A arte tem o poder de construir outras narrativas de ser e estar no mundo. Por isso, é importante que estejamos inseridas nesses espaços do fazer artístico, trabalhando e nos assistindo, ocupando diversas áreas e funções, de cima da pirâmide (enquanto ainda há pirâmide) até embaixo. Devemos ter garantido investimento e espaço para contar nossas próprias narrativas, como forma de sobrevivência de nossa comunidade e como estratégia de reposicionamento social. Ocupar espaços e linguagens artísticas com narrativas dissidentes das normas é garantir a valorização e a permanência de nossas histórias e vivências enquanto comunidade. Dentro do que me cabe hoje, uso a educação artística como ferramenta de formação de corpas dissidentes, trabalho de com equipes com diversidade estrutural e lutando por remuneração digna para as mesmas, além de fazer todo o berreiro para que a política institucional garanta a essa comunidade e a todas as outras pautas ativistas dissidentes, o dinheiro e os espaços para produzirmos nossos trabalhos e contarmos nossas histórias.
Informação liberta?
Uma informação não-binária, que garanta a complexidade das questões, que seja traduzida para diferentes públicos, comprometida com informar e não manipular, sim, liberta! Em tempo de excesso de informação, de informações falsas em massa, é preciso dedicar mais tempo ao ato de informar-se, afinal essa responsabilidade cabe também a quem consome informação, não apenas a quem a produz.
Você tem feito uma pesquisa que traz também a espiritualidade para este campo. O que te motivou a fazer esse diálogo?
Sou uma bicha nascida e crescida no subúrbio do Rio de Janeiro, toda semana havia as giras de umbanda na sala e no quintal da casa da minha avó paterna na Vila da Penha. Lembro-me do colégio de freiras no Méier. A tia da messiânica, do Johrei, a gente católica, as ladainhas, rezas, terços, música, louvores, o fado chateado de domingo, a “parte espírita” da família, o centro de mesa, minutos de sabedoria, as kardecistas, os passes, as benzedeiras, luz azul na coronária, banho de folhas, leite materno quente na orelha inflamada. Todas as quartas feiras, 18h, horário da Ave-Maria, toalha branca na mesa no centro da sala, copo d´água, vela, defumador. Grupo de Reza no meio da sala, mistura de religiões diversas, seguida de gira noturna, criança não podia assistir às vezes, nessas ocasiões espiava escondido. Domingo, missa na igreja da Conceição. Simpatia para namorar. Chá para dormir. Cruzar faca no galo para melhorar. Santo Antônio de Catigeró, Expedito, Logun, Maria, Iemanjá, Iara, Tupinambá Encantados, Budistas, toda essa gira mestiça cruzou e cruza minha caminhada. Tudo isso, esses diversos rituais e o que compõe esteticamente e energeticamente essas manifestações sempre me encantaram. Me senti assim quando eu entrei no teatro pela primeira vez. Há no fazer artístico, na nossa relação com a arte, um quê de sagrado. Porque a arte demanda de nós inteligências também imateriais, não apenas técnicas. Com e pela arte lidamos com emoções, pensamentos, sentimentos, ideias, sonhos, desejos, imaginação, portanto ela é uma ferramenta poderosa para trabalhamos inteligências outras, hackeando muito mais profundo do que a razão e a fé cartesiana, colonizadora e hegemônica nos possibilitam. Por isso e para me curar das minhas mazelas pessoais, pesquiso arte e espiritualidade desde 2011 em projetos performativos autorais, mas também em parceria com pessoas interessadas nesta gira artística dionisíaca, sagrada e profana. Além dos projetos autorais, oriento processos criativos de teatro, performance, audiovisual e eventos. Faço curadoria, realizo e fomento projetos que celebram arte como canal de revolução dos afetos, arte como ritual político de empoderamento, descolonialidade e equidade social.
Uma informação não-binária, que garanta a complexidade das questões, que seja traduzida para diferentes públicos, comprometida com informar e não manipular, sim, liberta!
Espiritualidade importa?
Se considerarmos que muitas religiões ainda hoje deslegitimam ou patologizam a existência de pessoas LGBTIA+ e que isso nos afasta da possibilidade de identificar o divino que há em nós, sim importa. Se por conta de diversas religiões seguimos sendo excluídas e dizimadas das histórias de criação e permanência deste mundo, sim importa. Levando em consideração que a anulação do espírito e da alma serviu e serve para projetos de colonização, escravização, opressão e genocídio e que pessoas como nós fomos e somos mortas em nome de vários deuses, sim, a espiritualidade importa e é um direito. Por isso é importante defendermos outras narrativas de conexão com espírito, transicionando deuses para melhor nos reconhecermos neles, para termos o direito de existirmos também a imagem e semelhança do divino que nos cabe, seja através de deuses ou de nós mesmas. Penso hoje que ocupar o espaço da espiritualidade é uma retomada do direito de existir antes de mesmo de precisar ser!
Como funcionam os grupos de reza?
Em agosto de 2020, por conta do elevado número de mortes no Brasil e no mundo pela Covid19 e pelo tanto de desalinhamentos internos e externos causados por esse momento de pandemia, iniciei um grupo de Reza, evocando os grupos de reza que aconteciam também semanalmente na mesa da sala da minha avó Esther. As Rezas que tenho compartilhado acontecem ao vivo nas segundas feiras, às 10h30, no instagram @digabreu. O intuito destes encontros que se seguem semanalmente é promover um espaço espiritualizado de diversidade, de acolhimento e de aprendizagem.
A Reza é um espaço comprometido com a interseccionalidade de pautas ativistas que ampliam a discussão política e social para além deste tempo binário.
Qual o objetivo de vocês?
O desejo é que juntes possamos vivenciar nossa espiritualidade como poder de criação e ação no mundo, como forma de fortalecimento e hackeamento vibracional das redes da internet em prol da coexistência respeitosa e com equidade. Rezamos cada qual do seu jeito, cada qual com sua crença, mas todes conscientes e responsáveis em promover revoluções efetivas e afetivas em nós e no mundo. A Reza é um espaço comprometido com a interseccionalidade de pautas ativistas que ampliam a discussão política e social para além deste tempo binário, engajando espiritualidade com responsabilidade social, com uma ciência integrada corpomenteespírito. Somos mais de 70% água, água conduz energia. Se liga, bobinha! Fé em si, fé no outro, fé no todo! Fé na vida, mana!!! Vamos juntes!
Agora me conta qual é o seu maior sonho!
No momento é seguir fazendo arte com propósito ativista, recebendo meu acué dignamente por isso, fortalecendo e sendo fortalecida pelas minhas, focada em despertar consciências outras para mim e para as manas e assim, ir contribuindo na construção de uma coexistência digna e respeitosa para todes.
www.abreurodrigo.tumblr.com
Rui Cortez
14/12/2020 09:58
Adorei esse relato muito claro, interessante e generoso…. extremamente interessante a forma como Rodrigo Abreu se pronúncia como artista espiritual.
No meu ver sempre achei que arte/espírito comungam na mesma frequência e importância e só se faz sentido assim….a arte como ferramenta da consciência ,e portanto fundamental na questão da evolução humana e por consequência na libertade.
Agradeço por essas palavras lúcidas e extremamente importantes de se ouvir e assimilar nesse momento delicado,porém interessante que estamos passando.
Obrigado Rodrigo Abreu….. Lux e Axé
Daniela
14/12/2020 22:11
Não esperava menos de Ti,pessoa de sensibilidade ímpar,amigo do bem que em muitas vezes. eu não entendendo ele me ensina, Obrigada meu Amor,aq vai pra vida eterna,ele é minha Lucidez.