Por Nelson Neto*

Quem descobre essa América Latina descrita nos livros de História está longe de saber o que significa as Nossas Américas do cotidiano. Oficialmente nos contam sobre o tal do descobrimento do continente pelos espanhóis, portugueses, ingleses e franceses. O desbravamento resultou em uma educação civilizatória dos pequenos grupos dos indígenas que por aqui viviam.

Nos últimos dois anos, me aventurei em mergulhar na Nossa América tanto no mundo acadêmico quanto cultural. Esse mergulho me levou a atravessar a Argentina profunda, da fronteira com o Brasil até os pés da Cordilheira dos Andes na fronteira com o Chile. Conheci a outra margem da fronteira brasileira com o Paraguai, conhecendo o país para além do centrinho de Ciudad Del Leste, conhecida por nós por vender muambas com impostos baixos.

Fui morar em Bogotá como pesquisador visitante da terceira maior universidade da América Latina e por onde os maiores pensadores passaram, inclusive o prêmio Nobel de literatura Gabriel García Márquez.

Esse período na Universidade Federal da Integração Latino-americana com professores de trinta e dois países dedicados ao pensamento nossa-americano e o contato com colegas bolivianos, peruanos, mexicanos, costarriquenhos, panamenhos, venezuelanos, equatorianos e de tantos outros países me fez repensar sobre nossa própria identidade enquanto brasileiros e americanos.

O que vai passando despercebido nessa história mal contatada nos livros é, por exemplo, que uma das consequências desse processo civilizatório – como chamam por aí – precisou de uma economia escravocrata, uma política violenta entre impérios e as etnias presentes. Por último um estupro epidêmico das mulheres, sobretudo negras, em busca do embranquecimento da população nossamericana da região.

Introduzir quem lê sobre essa Nossa América não significa assumir uma posição negativa e deprimente sobre nossa história, pelo contrário. Olhar com honestidade ao nosso passado nos dá a oportunidade de termos autoconsciência do lugar que pertencemos e da riqueza que ele pode nos oferecer. Podemos adiantar que o Brasil perde muito nesse quesito.

Aqueles habituados ao termo América Latina devem estar se perguntando o motivo pelo qual surge aqui uma tal de Nossa América. Não é por acaso. Diferente do Brasil, as colônias espanholas resistiram e lutaram por suas independências, e em cada uma delas, em seu período, surgiram movimentos intelectuais que tentaram criar outra América, uma América que não fosse inventada pelos colonos, mas uma Nossa América.

Um dos expoentes mais conhecidos é o cubano José Martín, que escreveu um extenso ensaio publicado no século XVIII chamado Nuestra América. Daí surge a máxima expressão: Nossa América para Nós. O texto foi escrito durante a guerra entre Espanha e Cuba.

Outras nossas américas foram desenhadas por outros homens como o argentino Sarmiento, responsável por um dos planos educacionais mais ousados da sua época. Bibliotecas comunitárias autônomas, expansão das universidades nacionais pelo território argentino, e educação para jovens adultos foram algumas de suas ações ainda no fim do século XIX que diminuíram o analfabetismo sistêmico na Argentina de modo surpreendente.

Podemos citar outros homens como o famoso colombiano/venezuelano Bolívar, que está longe de ser comunista – basta ler suas cartas de negociação com a Inglaterra enquanto ela era inimiga declarada da Espanha -. E ainda temos que citar o escritor uruguaio José Enrique Rodó que também esteve a frente deste movimento de construção de uma identidade latino-americana e ocupa um lugar de importância histórica quando olhamos para trás ao tentar reconstruir nosso próprio pensamento.

No Brasil existe um rico debate sobre patriarcado, misoginia, sexismo e as relações de poder entre homens e mulheres. Isso é um fato inegável. Mas, nesse rico debate, o que não podemos deixar de afirmar é que ainda estamos presos em um sistema colonialista do conhecimento que insiste se desprender da nossa realidade e da nossa história. Questionam e descrevem estes temas sob uma perspectiva norte-americana e europeia. Essa hegemonia também é questionada.

Vamos falar das mulheres que encabeçam hoje esse movimento de ressignificar nossa história, sobretudo a história delas, e colocar alguns pingos nos is.

Os movimentos negros e feministas nosso-americanos foram, e são, um dos maiores responsáveis por trazer outra ressignificação do próprio pensamento latino-americano masculinista que de algum modo tentava ressignificar essa América Latina tortuosa.

Nossos próximos encontros serão marcados por nomes com Lélia Gonzales, Glória Anzadúa, Mara Viveros Vigoya, Djamila Ribeiro, Sueli Carneiro, Suzana Gamba, Norma Füller e tantas outras. Bem-vinda e bem-vindo à Nossa América.

*Nelson Neto é jornalista especializado em Direitos Humanos na América Latina pela Universidade Federal da Integração Latino-americana. Mestrando em Estudos Latino-americanos pela mesma universidade. Foi pesquisador visitante na Escuela de Estudios de Género da Universidad Nacional de Colombia. Colaborou nas Organizações Globo em projetos sobre gênero, sexualidade e produção de conteúdo multimeios.