Freud em Pessoa analisa o Brasil e quer colocar o presidente no divã
É em uma época de clara repressão sexual, tanto própria quanto alheia, que a peça “Freud em Pessoa” (Associação Dramágico de Teatro) está percorrendo Minas Gerais e já tem apresentações agendadas em Curitiba, Londres e Portugal – além de negociações para temporada em São Paulo. É urgente colocar o Brasil no divã, e ninguém melhor do que o próprio pai da psicanálise para isso.
Freud é vivido no palco pelo ator Valério Peguini como resultado de um projeto de extensão da Universidade Estadual de Minas Gerais (UEMG) Campus Divinópolis. Uma experiência que transformou a visão dele sobre o austríaco Sigmund Freud e as pessoas em geral.
“Quando tive acesso aos fatos que marcaram sua vida e suas descobertas, percebi que tinha elementos dramáticos suficientes para realizar um espetáculo. Não se trata de uma biografia dele, mas sim de um pequeno retrato sobre sua vida”, explica Valério.
Por que falarem Freud nos tempos atuais? Falar de Freud sempre?
Freud foi um dos homens que tiveram a maior importância benéfica sobre o pensamento moderno. O que ele descobriu, essa forma de se trabalhar o inconsciente através das palavras, possibilitou um avanço no estudo das neuroses, a cura através da psicanálise. Sua vida teve elementos muito curiosos, marcados pela luta em defender a psicanálise dos médicos e da igreja. Seu legado está vivo até hoje. Evidentemente sua obra passou por mudanças, releituras para uma maior possibilidade de compreensão. Ninguém pode diminuir sua importância sem um conhecimento profundo de sua obra.
Onde está a atualidade de Freud hoje em dia? O que ele e a peça podem ensinar ao público?
Freud e psicanálise estão na Medicina. Os médicos praticamente não olham para seus pacientes: apenas ouvem suas queixas. Freud e suas ideias estão na propaganda, onde se trabalha as dores e os desejos inconscientes dos clientes para incentivá-los a comprar. É bom que Freud não esteja vivo para ver tal coisa. A psicanálise conta com milhões de adeptos no mundo todo. Estudantes de psicologia se dividem, onde metade sempre se identifica com ideias psicanalíticas. Freud está no Cinema, em séries da TV e da NetFlix, e no Teatro. É sempre lembrado após os 70 anos de sua morte. Freud está em inúmeras biografias, sendo ainda objeto constante de estudo. Freud está mais vivo do que nunca. Quando tive um contato mais aprofundado com a obra de Freud, entendi que ele desprezava biografias, pois a verdade era inacessível ao público. Porém, em se tratando de uma possibilidade em demonstrar não sua vida íntima, mas propagar suas ideias, talvez ele aceitasse que fizessem um espetáculo sobre ele. Sobre esse ponto pretendemos contar um pouco de sua batalha para defender a psicanálise como uma ciência que estuda o inconsciente na vida psíquica e o papel dos impulsos instintivos e assim por diante. O espetáculo chega a ser didático e possibilita um entendimento sobre a psicanálise e sua importância. Pretendemos, principalmente, propor ao público uma reflexão sobre a vida, a velhice, o sucesso, a popularidade e a morte.
Qual tipo de contribuição você espera dar com a peça? É uma provocação?
Pretendemos que as pessoas compreendam que a psicanálise, mesmo sem nenhuma possibilidade de comprová-la, é uma ciência. Muitos adversários da psicanálise predizem que a mesma é como a astrologia. Já dizia Freud: “psicanálise é algo que aprendemos primeiramente em nós mesmos, mediante o estudo de sua própria personalidade”. O espetáculo é provocativo em muitos aspectos. O “bloco” político, por exemplo, é repleto de críticas aos Estados Unidos, avanço do nazismo, empáfia de Hitler, segregação racial (Freud era Judeu) e a questão do sentimento de inadequação que afeta a idade senil. Freud sofreu muitos preconceitos durante a vida pelo fato de ser judeu. Depois, pelas suas teorias. Há 100 anos não se falava sobre sexo. E algumas de suas teorias se baseiam nisso. Suas ideias permanecem atuais e polêmicas até os dias de hoje.
É possível analisar as personagens políticas atuais ou nem Freud explica o que estamos vivendo em tempos de fake news e pós-verdade?
Certamente é possível analisar as personagens políticas sob o olhar freudiano, sobretudo pelo fato de que Freud certamente classificaria de desprezível esse conservadorismo atual. Freud certamente explicaria essa onda como uma retenção sádico-anal avessa ao prazer e ao mesmo tempo uma conduta mais agressiva nos negócios e na política. Outra coisa que Freud já criticava em sua época era a hegemonia americana, e os classificava como “selvagens que não são seres humanos da melhor categoria”. Freud já preconizava essas ideias que vivemos hoje. Boatos eram publicados sobre sua saúde e sua morte por repórteres intrometidos, resumos repletos de erros sobre suas ideias o irritavam profundamente e algumas vezes o deixavam enfurecido. Há 100 anos, Freud já era alvo das fake-news.
Há 100 anos não se falava sobre sexo. E algumas de suas teorias se baseiam nisso. Suas ideias permanecem atuais e polêmicas até os dias de hoje.
Mergulhar na vida e obra de Freud mudou sua visão sobre o ser humano? Em que sentido?
Hoje em dia observo a velhice com outros olhos e tenho profundo respeito pelo sofrimento humano. Aprendi que muitas dores não se curam com remédios ou palavras. A psiquiatria se transformou em um banco de receitas. Depois de Freud fiquei mais pessimista, acreditando que por um lado o ser humano é incorrigível. Por outro, acredito que através da psicanálise é possível ter uma visão mais profunda sobre nós mesmos.
Quem você colocaria no divã?
Colocaria o presidente Jair Bolsonaro, pois acredito que ele não tenha saído da fase anal. Seus discursos incoerentes com o cargo que ocupa, seu desprezo pelas minorias, seu ódio aos homossexuais podem revelar desejos reprimidos que só mesmo Freud poderia explicar. Ou nem mesmo Freud explicaria tamanha boçalidade.
Acompanhe a agenda de apresentações em www.facebook.com/divinaciadeteatro
Fotos: Fabiana Souto