Bem-vinde a revista online do @ezatamentchy!
Procurar

DESBUNDE-SE

Por Harrison Nogueira*

Era um dia comum. Eu tinha acabado de acordar, coloquei meu uniforme de trabalho e fui enfrentar as agruras de mais um dia de labuta em alto mar. Ao adentrar em minha sala, senti um clima diferente. As pessoas falavam alto e se amontoavam em volta de um tablet, uma agitação incomum naquela hora da manhã.

Ao abrir a porta, todas as atenções se voltaram contra mim. Eu, carregando uma mochila nas costas e uma noite mal dormida a tiracolo, achei que aquela cavalaria agitada passaria com seus tanques sobre mim. Por uma fração de segundos repensei tudo que eu tinha feito no dia anterior e nada que eu tivesse lembrado, nem de bom nem de mau, teria motivado tamanho alvoroço.

“Olha seu amigo aqui!”, bradou um deles em tom acusatório, como se eu houvesse sido descoberto de algum crime cometido em parceira com outra pessoa.

Olhando o aparelho eletrônico, pude ver a foto de um velho conhecido, colega de profissão e de empresa, deitado em uma piscina, curtindo sua merecida folga, cujas despesas haviam sido pagas com o dinheiro obtido por méritos próprios. A foto havia sido publicada em seu perfil pessoal, de maneira que não havia qualquer correlação com trabalho. A publicação, para mim, no entanto, não era novidade e eu, inclusive, já havia deixado minha curtida havia uns dois dias.

O motivo do choque de meus colegas era que a fotografia deixava à mostra as nádegas do dono do perfil, numa foto bem batida e de bom gosto, onde sua bunda deveria ser o mote coadjuvante dos holofotes, haja vista que fora tirada sob a luz do sol radiante da Grécia, com o mar Egeu ao fundo e sem nenhuma conotação ou referências sexuais. Uma bela foto. Nada mais que isso.

Sem nenhuma conotação ou referências sexuais. Uma bela foto. Nada mais que isso.

Viver em um ambiente majoritariamente heteronormativo e masculino tem lá suas idiossincrasias. Temos que, por diversas vezes, fazer ouvidos moucos, fazer-se de cego, surdo e mudo. Saber pesar a hora de quando e se vale a pena gastar a energia da contra argumentação e a hora de deixar a estupidez fluir, tal qual um rio poluído, sem que para isso sejamos contaminados por suas águas tóxicas. Em um ambiente de confinamento, vida pessoal e profissional se misturam e o equilíbrio da boa convivência é uma luta diária, especialmente para aqueles que, como eu, são e pensam diferente da maioria.

No tribunal súbito que me colocaram, eu, advogado de mim mesmo e réu inesperado, aludi que era apenas uma bunda de uma pessoa do meu convívio pessoal, ainda querendo entender o motivo da algazarra – apesar de presumir que esta, de fato, seria a reação esperada de um grupo de homens héteros e brancos, ocupantes do topo da cadeia alimentar social.

Ao longo do dia o impacto inicial não diminuiu. Por que cargas d’água uma simples bunda causava tanto desbunde naquele ambiente? Para homens que passam suas horas de lazer vendo fotografias de mulheres seminuas nas redes sociais, com suas rabas, rabetas e rabetões escancarados em feira-livre, qual deveria ser o motivo de uma bunda masculina afetá-los sobremaneira?

Talvez a resposta para minhas indagações resida na presunção de que mulheres seminuas são objeto de desejos da classe. Ao apreciarem seus corpos exuberantes, elas são destituídas de sua humanidade, tratadas como grandes pedaços de carne num açougue. A objetificação do corpo feminino é um hábito corriqueiro dentre os alfas e, talvez por isso, uma foto de uma bunda feminina seja apenas mais uma foto num feed infinito de publicações.

Já a foto de um homem é um ultraje à frágil masculinidade. Uma afronta. Se for assumidamente homossexual, pior ainda. Ocupando cargo de liderança, é pena dobrada. O veredito é a fogueira. Na Salém dos grupos de WhatsApp as bruxas ainda ardem, queimadas em praças públicas por serem quem são. Nada de novo sob o sol.

Já a foto de um homem é um ultraje à frágil masculinidade. Uma afronta. Se for assumidamente homossexual, pior ainda. Ocupando cargo de liderança, é pena dobrada.

Meu amigo sempre foi assim, à frente de seu tempo, considerada uma pessoa transgressora por onde passou. Apesar de não sermos amigos íntimos, temos uma vida em comum. Estudamos nos mesmos colégios, na mesma universidade e, hoje, trabalhamos na mesma empresa. Nas horas de folga, somos vizinhos e frequentamos quase o mesmo círculo de amizade. Portanto, esse texto é, também, minha mea-culpa e agradecimento a ele que, desde antes de eu me desacorrentar do armário no qual eu mesmo me atei, abriu, e ainda abre, portas pelas quais eu passei e passarei. Por ter tornado a minha caminhada mais fácil. Foi infantaria e enfrentamento.

É ainda triste constatar que, hoje, uma foto contendo uma simples bunda cause tanto alvoroço, ou, no meu caso, fantasiar-me de sereia na minha festa de despedida da faculdade ou, ainda, publicar uma foto beijando o rosto do meu namorado, possa assustar tanto aos que se intitulam desprovidos de preconceito. Até a simples capa de um tablet e estojo de escova de dentes, proposital e igualmente rosas, não passam incólumes, causam sempre um inexplicável frisson. Se, por um lado não tenho colhões – nem vontade – de expor meu derrière em praça pública, me dou ao luxo de cometer, também, minhas pequenas transgressões.

Viver plenamente, fazer o que se quer, quando se tem vontade de fazer sem se importar com opiniões de outrem não deveria ser considerado transgressor, mas infelizmente ainda o é. Não deveríamos, por outro lado, senão absolver os réus caso aquilo que se tenha cometido não prejudique nem a si, nem ao próximo?

Apesar dos significativos avanços na conquista pela igualdade, não podemos nos deixar esmorecer, a luta é diária, sejam elas grandes ou pequenas. Aqueles que lutaram em Stonewall de uma Nova York truculenta que tentava varrer os transviados para guetos insalubres, pavimentaram caminhos pelos quais podemos passar hoje. Assim, também, nossos pequenos atos transgressores podem moldar o futuro e talvez consigamos fazê-los entender que uma bunda é apenas uma bunda e que a cor rosa de um estojo é apenas mais uma cor dentre a extensa gama de cores que podemos ver, e ser.

Nossos pequenos atos transgressores podem moldar o futuro e talvez consigamos fazê-los entender que uma bunda é apenas uma bunda

.

Os cães que ladram não veem que nossa caravana já está em movimento, não há como pará-la. Ela se move, ainda que lentamente, avante e sem atropelar ninguém. Não habitamos mais somente o salão de beleza ou a risada rasa da novela, ocupamos lugares no mundo e colocaremos nossas bundas à mostra sempre que tivermos vontade. É melhor já irem se acostumando.

*Harrison Nogueira é oficial da Marinha e engenheiro, pai da Nina e do Pitágoras e namorado do Júlio. @harry_walnut

Redação

Redação Ezatamentchy

4 Comments
  1. Victor

    05/09/2019 10:26

    Sempre amo os textos do Harrison!

  2. Guilherme Ferreira

    05/09/2019 11:28

    A preciosidade do texto está no despudor de falar de um assunto que não deveria causar incômodo a ninguém. Harrison, meu amigo, cada parágrafo foi um deleite. Parabéns!

  3. Glória Strehle

    05/09/2019 12:41

    Encantador PARABÉNS !!! De uma clareza… uma leveza… muito enriquecedor 🌷🌷🌷

  4. Hilma

    29/06/2021 11:13

    Sempre bato Palmas em pé para todos seus textos. Amoooo te.

Deixe um comentário