DJ Fe Felício tem grupo de apoio a pessoas trans universitárias para lutar por mais espaço para todes na Academia

Nova Esperança (PR) é a cidade onde mora atualmente a maravilhosa DJ e influencer digital Fe Felício. Uma libriana de 21 anos que traz tudo o que o nome de sua cidade promete: uma nova esperança. Fe aproveitou os acessos que teve ao longo do pouco tempo de vida para abrir caminho para outres de forma firme, decidida, sempre pronta.

Ela é responsável por um movimento que luta pela entrada de pessoas trans nas universidades. Uma rede de apoio que quer banir de vez destes corredores os olhares tortos, as piadinhas, a proibição de usar o banheiro de acordo com o gênero e aquele momento da chamada, onde o nome de registro pode ser dito em voz alta.

São desafios que pessoas trans enfrentam desde muito tempo. Mas Fe não baixa a cabeça para o CIStema e quer quebrar esses preconceitos de dentro para fora. É na sala de aula, com a presença política das pessoas trans, que este caminho será construído.

Na verdade eu senti que eu precisava mudar algo em mim porque eu vivia ouvindo as pessoas dizendo que por eu ser travesti eu tinha que fazer isso ou aquilo. Mas eu entendi que não precisava mudar nada em mim porque ser travesti não é sobre mudar, né?

Coloquei várias pessoas trans dentro do grupo e falei: vamos criar políticas públicas dentro das universidades, compartilhar leis que a gente conheça, conquistas como o nome social na chamada, troca de experiências, como se manter na faculdade, é um grupo também para desabafar”, conta.

Na entrevista a seguir ela fala ainda sobre música e sua carreira de DJ e a vontade de fazer todes felizes:

Você sempre sentiu que precisava mudar algo em você?

Na verdade eu senti que eu precisava mudar algo em mim porque eu vivia ouvindo as pessoas dizendo que por eu ser travesti eu tinha que fazer isso ou aquilo. Mas eu entendi que não precisava mudar nada em mim porque ser travesti não é sobre mudar, né? É sobre não ser o que os outros acham que você é, como te definiram. Você não precisa mudar algo fisicamente em você para ser travesti ou para ser uma mulher ou homem trans. Você faz o que você quiser, mas não necessariamente precisa fazer alguma coisa. Eu não me considero em um processo de transição porque eu não estou transicionando de nada para nada. Eu sempre fui assim e acredito que isso que me torna diferente, me faz me encaixar no meu lugar, que é ser travesti, nem homem nem mulher.

É sobre não ser o que os outros acham que você é, como te definiram.

Você enfrentou muitas dificuldades? Como vencer esses desafios?

Eu tive muito acesso ao poder entrar em uma universidade boa com bolsa de estudos, o que é negado para várias outras. Tive o acesso de conseguir emprego, porque a minha área foi um pouco mais aberta comigo. Mas muitas foram as dificuldades no campo afetivo, para alugar uma casa, conseguir um freelance, conseguir outro trabalho. É difícil pensar no futuro sendo travesti, ficando sozinha, envelhecendo, com mais um pico de testosterona, se vou querer mudar algo em mim ou não, se serei feliz com meu corpo como sou hoje, etc.

O que você pode falar para outras pessoas trans que estão neste caminho e precisam superar obstáculos?

Eu sempre tento manter a minha cabeça no lugar. Ver o que eu gosto ou não de fazer. Ver o que está realmente me machucando, ver o que eu estou tornando reralmente problemático demais para fazer com que eu não surte. É assim que eu vou lidando para vencer esses desafios que vêm aparecendo. O que eu posso falar para outras pessoas trans que também enfrentam obstáculos é que tudo é questão de fases, nossa vida é feita de fases. Para travestis e transexuais, cada idade, a cada ano, se passam quatro anos, sempre falo isso. Porque se as pessoas que são o padrão estão matando um leão por dia, a gente está matando quatro leões. É uma fase. Em algum momento você vai estar bem com você. Em algum momento você vai se sentir bem. Acredite em você, nem tudo está perdido como você acha que está. É tudo uma fase e vai passar. Pode não passar do jeito que a gente quer, mas vai passar de alguma maneira.

Você não precisa mudar algo fisicamente em você para ser travesti ou para ser uma mulher ou homem trans. Você faz o que você quiser, mas não necessariamente precisa fazer alguma coisa.

 

Como funciona a rede de apoio para pessoas trans universitárias?

A rede de apoio a pessoas trans universitárias foi criada por mim no ano passado. Coloquei várias pessoas trans dentro do grupo e falei: vamos criar políticas públicas dentro das universidades, compartilhar leis que a gente conheça, conquistas como o nome social na chamada, troca de experiências, como se manter na faculdade, é um grupo também para desabafar. Acabou que a quarentena chegou e a gente conseguiu lutar muito pouco por essas políticas, fazer muito pouco, mas está fluindo, está acontecendo.

A presença de pessoas trans nas universidades, e a plena aceitação, ainda está longe do ideal? Como você enxerga isso?
Isso tem mudado ao longo dos anos?

Claro que sim. Somente menos de 3% da população trans estão na universidade. E muito além de entrar na universidade é se manter. De nada adianta ingressar uma pessoa trans na faculdade se você não tem estrutura para fazer com que ela fique confortável lá, que tenha o mesmo tratamento que as outras pessoas têm. Respeito do nome social, andar no corredor sem ser olhada de forma crítica, sem nada disso que acontece quando nossos corpos fogem do binarismo, do padrão. Essa presença está sim longe do ideal, muito longe. Não vejo muita mudança ao longo dos anos quando falamos desse campo universitário. As pessoas trans não estão nem terminando o Ensino Médio. E para fazer alguém chegar à faculdade a gente começa brigando pelo Ensino Médio. São questões e etapas diferentes na vida de uma pessoa. A dificuldade que uma pessoa sofre no Ensino Médio não vai ser a mesma de uma pessoa que está na faculdade. A gente precisa primeiro resolver um para começar a brigar pelo outro.

Eu não me considero em um processo de transição porque eu não estou transicionando de nada para nada.

Como podemos incluir mais pessoas trans nas universidades?

Criando políticas públicas mesmo! Quanto mais a gente tornar a universidade mais acolhedora, quanto mais espaço a gente der e começar a naturalizar corpos trans, ensinar que corpos trans são comuns, a gente vai poder ter esse acesso. As pessoas trans conseguirão terminar o Ensino Médio, conseguiremos pegar um ônibus para fazer vestibular sem o risco de sermos mortas ou correr o risco de sofrermos transfobia e perder a hora de chegar. Ou sem ter medo de chegar lá e ser chamada em voz alta pelo nome de registro. Ou alguém não deixar você entrar no banheiro feminino. Se a gente naturalizar esses corpos as pessoas trans vão poder se expressar e andar livremente e com isso conseguirão ocupar vários lugares.

Eu sempre fui assim e acredito que isso que me torna diferente, me faz me encaixar no meu lugar, que é ser travesti, nem homem nem mulher.

Eu estava ouvindo aqui o seu set de funk, maravilhoso. Toda dançante, te pergunto: o que a música representa na sua vida?

A música representa muito na minha vida, é uma expressão para mim. Embora eu ainda não crie as músicas, eu consigo ouvir músicas, gostar dos toques, dos beats, daquele contratempo, aí a coreografia complementa tudo. Me faz me expressar de uma maneira diferente, me tira desse mundo publicitário de criadora de conteúdo somente, me faz expressar, dançar, pular, me jogar e deixar os outros felizes. Quando vi que ser DJ era fazer os outros felizes e me fazer feliz, foi completo.

A arte pode transformar as pessoas? Quais suas principais referências musicais?
A arte transforma as pessoas sim, seja lá como for. Se você se abrir para a arte, se estiver pronta para a arte, ela vai transformar a sua vida sem dúvida alguma. Eu amo Linn da Quebrada, Urias, Pepita, Danna Lisboa, Bicharte, Katy Perry, Lady Gaga, Rihanna, Beyoncé. Eu gosto de muita gente. Admiro a Anitta, não como pessoa, mas como cantora e empresária, Ludmilla. MC Rebecca, MC Drica, todas as MCs que estão de frente cantando e querem ser respeitadas por isso. Todas as outras também que sobrevivem neste meio artístico normativo.

É preciso entrar lá dentro para quebrar de dentro para fora. E tudo que você precisa quebrar você precisa de força e concentração, precisa saber quebrar.

É preciso força contra o CIStema?

Com certeza, muita força. É o que eu sempre falo, a gente precisa ocupar o lugar porque o cistema é como se fosse uma grande empresa. Para chegarmos ao CEO lá em cima, pegar o elevador e subir ao último andar, a gente porecisa estar lá dentro. Então tem aliados que estão lá dentro para nos colocar lá, seja pela porta da frente, pelo estacionamento escondido dentro do carrinho que vai repor os snacks da geladeira. É preciso entrar lá dentro para quebrar de dentro para fora. E tudo que você precisa quebrar você precisa de força e concentração, precisa saber quebrar.

Quanto mais a gente tornar a universidade mais acolhedora, quanto mais espaço a gente der e começar a naturalizar corpos trans, ensinar que corpos trans são comuns, a gente vai poder ter esse acesso.

Agora me conta seu maior sonho!

Acho que é utópico falar que meu maior sonho é que todo mundo se respeite e etc. Que pessoas trans sejam vistas como pessoas, não como monstros. Mas hoje meu maior sonho é me tornar uma digital influencer, aparecer, conseguir viver disso, de ser eu mesma e poder fazer a minha arte, o meu trabalho. Ser a minha chefe.

Instagram @feliciofe