Baiano Lui fala à Ezatamag sobre música, militância e a importância da liberdade do ser humano
“Estas semanas foram intensas no desenvolvimento do EP, que tá caminhando pra finalização. Logo ele chega brilhando e fervendo no mundo pra legitimar nosso existir e amar!” É assim que o cantor baiano Lui define os preparativos para o lançamento de “Eu Sou Amor” (13 de novembro), uma reunião de letras cheias de representatividade, luta e muito ritmo.
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Leonino de 37 anos, Lui sabe da importância de se fazer arte livre em um país atualmente preso ao conservadorismo. Vem dele um dos gritos mais marcantes contra a sorofobia, a LGBTIfobia, o racismo, o machismo e tantas outras questões contra as quais todos os dias, ainda, precisamos lutar.
É para que este “ainda” saia da frase que ele canta. “A gente que é artista constrói imaginários, forma opiniões, cria legados, sabe? É nesse lugar que penso que a liberdade é fundamental – como base para que a pessoa reconheça sua trajetória e organize as pautas que lhe formam, deslocam e legitimam”, conta na entrevista a seguir:
Como tem ficado seu cotidiano de trabalho nestes tempos de pandemia?
No início foi um caos. Eu realmente não tinha qualquer dimensão de como iria sobreviver, uma vez que TUDO foi cancelado. Mas como eu não deito pra nada e não ando sozinho, aos poucos fui cavando novas possibilidades e me arriscando em territórios até então distantes. Fato é que se tem algo positivo em toda a crise pandêmica é meu mergulho efetivo na música. Até então essa linguagem me atravessava sempre num híbrido que a colocava numa caixinha menor, aquela do “depois eu faço isso, quando tiver tempo…”. Neste caso, eu tinha tempo de sobra pra olhar, cuidar, me experimentar intensamente. Resultado disso é o EP “Eu Sou Amor”, que logo logo chega ao mundo (mas já tem umas músicas aí nas plataformas pra galera ir conhecendo, se achegando e deixando o corpo ser tocando por meu som.)
Decidi mergulhar e abordar a questão que deve ser discutida não apenas pelos corpos que vivem com HIV, mas por TODA a sociedade.
Como foi a trajetória até o álbum de estreia? Qual a mensagem dele?
Eu comecei na música em 2013 quando junto A Outra Companhia de Teatro tocávamos toda quinta-feira, no Calçadão do Politeama, bairro aqui na região central de Salvador. Era o Música de Quinta, que por anos seguiu revisitando as músicas brasileiras com muito humor e fomentando uma cena de afirmação das dissidências. Em 2018, fiz o documento-show #comprovendotrocoAMOR, onde articulava minha biografia a canções pautando a homoafetividade. Para esse trabalho, compus algumas músicas que no ano passado foram organizadas num primeiro EP homônimo à obra cênico-musical que citei. Virado o ano de 2021, decidi que era mais do que tempo de me dedicar a essa página da música em mim e comecei a rascunhar composições, pensar em temáticas, articular equipe. Nesse momento, defini que a pauta da homofobia é algo que estará inevitavelmente presente no que faço (afinal sou um corpo LGBTQIAP+ e um artista que se interessa pelo cruzamento do real e da ficção na construção de novos imaginários), mas que nesse momento precisava evocar uma discussão sobre o HIV/AIDS, somando forças no combate à sorofobia. Estamos todes cruzando uma pandemia, todo mundo em alguma instância tem falado de vírus, sorologia, contágio… o terreno está mais do que aberto para falarmos sobre essa outra epidemia que há 40 anos atravessa nossos corpos. Foi diante desse panorama que decidi mergulhar e abordar a questão que deve ser discutida não apenas pelos corpos que vivem com HIV, mas por TODA a sociedade, afinal o vírus não escolhe quem será infectado, não existe cara da AIDS, nem grupo de risco ou qualquer coisa do tipo que pejorativamente ainda é perpetuada em nosso existir. Precisamos desestigmatizar nossos corpos, afetos e existências!
Você acha que inspira mais gente sendo um artista livre? Qual a responsabilidade nisso?
A gente que é artista constrói imaginários, forma opiniões, cria legados, sabe? É nesse lugar que penso que a liberdade é fundamental – como base para que a pessoa reconheça sua trajetória e organize as pautas que lhe formam, deslocam e legitimam. Eu sou um artista que gosta de se enxergar coletivo, multidão, oceano. Eu faço o som que faço porque outras tantas pessoas abriram caminho para que eu chegasse aqui e pudesse me expressar livremente. Gente que nem sempre soube o que é ser livre, mas que batalhou por isso. Gente que resiste e inventa mecanismos pra driblar o sistema que quer lhe exterminar. Gente que dissente de um padrão que normatiza corpos, afetos, relações. É pensando nisso tudo que sim penso que ser um artista livre pode ser inspirador pra outras pessoas. Porém, essa minha liberdade precisa ser bem usada, e é aí que enxergo a potência das ancestralidades todas que me cercam e inspiram (pretas, LGBT, positivas etc), porque elas me dão a perspectiva espiral do trabalho e sua responsabilidade. Quando canto “Indetectável é igual a Intrasmissível” na música, estou falando de uma comunidade, de um mar de vidas que precisam saber disso, debater sobre isso, se afirmar diante disso. Quando nomeio meu EP “Eu Sou Amor” é pensando nesse eu-coletivo que precisa positivar seus afetos!
Estamos todes cruzando uma pandemia, todo mundo em alguma instância tem falado de vírus, sorologia, contágio… o terreno está mais do que aberto para falarmos sobre essa outra epidemia que há 40 anos atravessa nossos corpos.
O que você mais gosta no retorno que recebe?
Eu gosto de um tudo. Quando alguém me manda uma versão, fico apaixonado e já querendo propor coisas juntos. Quando uma pessoa faz um vídeo curtindo meu som, como rolou bastante no caso de “Positivo”, aquilo me dava uma força, uma coragem, era como se tudo fizesse mais sentido. A gente quando cria uma música não tem muita dimensão real de como ela vai chegar e todo retorno acaba sendo como um presente que você vai se emocionando conforme vai desembrulhando e conhecendo seu intento. Eu gosto dos retornos, gosto de ouvir, de ler, de assistir, de saber, mesmo porque eles são também um termômetro, nos orientam, nos guiam, nos ensinam muitas vezes.
Qual a importância de celebrar a cultura do seu Estado?
Gosto de pensar que a afirmação de si passeia pelos lugares que te legitimam. Tenho a sorte da minha baianidade ser combustível pra o que faço e o que sou. Não consigo pensar em nada sem considerar o swing da minha gente, o gingado dos corpos que naturalmente se remexem, o sotaque de nossa fala, o imaginário de nossa cultura… onde eu for quero ser reconhecido como o baiano que sou, porque isso inspira os meus que aqui estão construindo suas carreiras, desenhando seus caminhos, afirmando seus sonhos. Mas também não gosto de ficar restrito apenas à ideia-fronteira de Estado, sabe? Porque além de baiano eu sou alagoinhense, sou nordestino, brasileiro, latino-americano, afrodiaspórico… E cada uma dessas palavras me significam ao situar os lugares de pertencimento que têm a ver como minha origem e meu universo cultural fundante.
Quais artistes mais te inspiram?
Nossa mãe! Tem um mar de gente que me inspira… a Liniker e o Cazuza são supremas inspirações! Mas não consigo pensar música sem me deixar atravessar por Carlinhos Brown, Daniela Mercury, Baiana System, Gilberto Gil, Afrocidade, Baco Exu do Blues… Como não se inspirar no trabalho de Hiran, Luedji Luna, Larissa Luz, dAs Baías, da Mahmundi, da Ludmilla, do Johnny Hooker…? É impossível não beber nas composições de Caetano, da Bia Ferreira, de Silva, de Emicida, da Drik Barbosa, do Rico Dalasam, do Renato Russo…? Eu sou esse complexo de inspirações sem conseguir ser sucinto quando o assunto é música!
Qual é seu maior sonho?
Que pergunta foda essa! Mas eu espero mesmo que minha música possa ecoar no mundo cada vez mais firme, contribuindo com a afirmação de nossa gente tão estigmatizada, do meu povo tão negligenciado, de minha comunidade tão violentada. Que minha arte seja inspiração para reconhecimento do poder que existe em cada um – e do amor como força motriz e matriz para revolução que há de nos respeitar! Espero que meu som provoque as pessoas a baterem no peito vibrando plenas entoando o verso EU SOU FODA, numa evidente convocação performativa de afirmação das negativas impostas pelo vírus colonial da cisbrancoheteronormatividade.
Fotos: Diney Araújo