Daniela Mercury lança música e dispara: “A gente sempre tem que ficar reiterando o nosso direito de viver em paz”

É impossível resumir o reinado de Daniela Mercury em apenas uma música, mas “Abraço” tem uma representação ímpar de importantes ingredientes que a formam como artista. “Os sonhos são iguais/Terra à vista/A morte da fome/A guerra aos homens do mal. Colo pras crianças/Vida pros doentes/Os desejos são os mesmos/De água onde é quente/De paixão eternamente/De ética pro convívio/De amor para os vivos, para os vivos.”

Uma mistura orgulhosamente baiana comprovada em um delicioso papo com a Ezatamag para divulgar a Live do Orgulho, no próximo domingo, 28 de junho, a partir das 18h – para espalhar justamente esse amor para os vivos e lembrar sobre a importância da ética para o convívio, levar boas vibrações de saúde aos doentes, aconchego às crianças e a resistência aos Homens (com maiúscula, não o gênero) do mal.

Não fosse boa notícia o bastante, lançou hoje sua versão deliciosa para “Toda Forma de Amor”, de Lulu Santos (acima). “Foi uma delícia cantar ‘você é minha esposa e eu sou sua mulher’. Fiquei cantando pela casa.”

Não chega a ser uma surpresa que ela realize esta live, já que a primeira trouxe tanta contundência e resistência, bandeiras do arco-íris e reflexão. Daniela nunca se eximiu da responsabilidade dos grandes artistas. Ousada, chegou a ser vaiada ao quebrar padrões no Carnaval de Salvador e levar a então ascendente música eletrônica para o mesmo trio-elétrico onde celebra a tradição dos blocos afro, a luta feminista e o orgulho de ser baiana.

São ingredientes que, adianta ela, estarão presentes no domingo em um cenário que está sendo feito ao lado de sua amada, Malu, e das três filhas mais novas. Luta, resgate histórico e a Daniela Mercury pessoa e artista dão o tom enquanto a gente se acaba de dançar na sala de casa torcendo para tudo isso passar. Logo, porque a gente merece o Carnaval em paz.

Daniela faz tudo isso em uma nova realidade onde a multidão que a acompanha em suas apresentações não estará presente de forma física, mas poderá participar de uma maneira bem pessoal: faça seu cartaz e envie uma foto para Daniela. “Então domingo prepare sua roupa, prepare o seu cartaz para se manifestar e mandar para mim para poder no outro dia a gente fazer o vídeo do making of, já que vocês não estão perto de mim. Vamos ver como o público reagiu à Live”, convida.

Foi uma delícia cantar ‘você é minha esposa e eu sou sua mulher’. Fiquei cantando pela casa.

“Hoje está um corre-corre, eu tenho várias entrevistas, estou me maquiando, trabalhando. Tudo ao mesmo tempo. Tenho uma chamada de vídeo depois daqui. Estou arrumando a Live, ensaiando coreografia com as filhas, tudo em um dia não cabe. Só para lhe dizer que eu não almocei até agora. Se não precisasse comer a gente não comia, bailarino é assim”, começa ela o papo a seguir:

Você tem a impressão de estar trabalhando mais, de que não tem hora para nada?

Sim. É uma demanda gigantesca e eu estou vendo que muita gente está nessa situação. A gente está em casa e acaba acumulando muitas funções. É também um momento emocionalmente delicado em que a gente tem que dar atenção para a família inteira, meus pais são muito velhinhos e precisam que a gente fique monitorando eles para eles não relaxarem na quarentena. Eles sempre acham que não tem muito problema e a gente vai vigiando. Todo mundo em estado de alerta. A gente está em estado de alerta, nessa expectativa de ficar doente ou em algum momento de alguém perto ficar doente.

É uma tensão constante, não é? Ficamos torcendo para não ter notícia nenhuma.

É muito estresse, fora as notícias, fora a situação do Brasil para as lutas, o que a gente tem que fazer para manter a democracia, fora o que tem que fazer para proteger a floresta. Não há um dia de trégua, a gente tem que estar pronto. Passamos do terceiro mês de quarentena, mas sem parar um dia de trabalhar. A gente aqui em casa está precisando de férias porque saímos do Carnaval, fizemos todo o Verão, que foi muito cansativo, e a gente quando foi tirar férias, nossa viagem foi cancelada. Eu tinha alguns shows antes dos dias de férias e depois íamos para uma praia descansar. E aí não pôde ter férias. Virou essa expectativa, essa tensão, essa preocupação com a população. Sempre querendo dar suporte para todo mundo, querendo ajudar todo mundo. Ao mesmo tempo as filhas se adaptando ao EAD (ensino à distância), que não é o ideal. Não se faz EAD da noite para o dia, principalmente na escola fundamental. São muitas questões. Cuidar de coisas da casa e organizar a vida. São todas as questões que a gente está fazendo para que todo mundo fique protegido, para que ninguém corra risco, para que fique todo mundo bem. Quanto maior a turma, mais gente para cuidar.

E ainda sobrou tempo de você organizar uma Live para domingo. Como surgiu essa ideia no meio de tudo isso?

A gente já tinha uma expectativa de atuar no mês de junho. Não sabíamos como ia ser. Lá em março, quando começou a quarentena, pensamos se haveria chance de nos manifestarmos de algum jeito. Aí a gente viu que a Parada LGBT ia ser feita online. E nós sempre participamos de muitos eventos neste mês, palestras, manifestações da nossa luta. Então eu e Malu decidimos reforçar esse trabalho. Começamos a pensar em como a gente podia fazer isso. A gente já tinha feito a primeira live como experiência. E aí ficamos pensando como ia fazer e por qual motivo ia fazer, porque senão não haveria sentido. Eu tinha mais de 10 shows marcados neste mês e no mês seguinte na Europa porque é uma data mundial de celebração e eu sempre busco abordar essa temática durante o mês de junho. Tivemos a ideia de fazer essa live. Na verdade, foi Malu que teve a ideia e começamos a estruturar. A gente não teve muito tempo para pensar se era viável fazer, se valia a pena. Valer a pena sempre vale no sentido de fazer a manifestação. A gente está em um momento do País em que a gente precisa recuperar nossa luta. Não se pode ir para rua, mas é um momento de visibilidade para nossa comunidade que dá para abordarmos os temas e sermos vistos.

Como levar isso para o virtual? Fazer ter essa força?

O que aconteceu, na verdade, é que, quando Malu falou da live, eu pensei: estamos dentro de casa, é o momento da família, da nossa família. A gente tem feito militância muito com as três filhas, com os dois outros filhos que estão casados e fazem também quando estão convidados a fazer, mas não estão conosco em casa. As mais novas ficam e ajudam em tudo. Quando conversamos com elas sobre fazer uma live familiar, dentro de casa, falando das questões, testemunhando um pouco, vimos que é um momento muito bom. Porque eu fiz no ano passado um clipe coincidentemente dentro de casa, com esse intuito de fazer as pessoas verem que os casais homoafetivos são iguais aos outros. Na verdade, quaisquer formações de família são muito parecidas.

É muito estresse, fora as notícias, fora a situação do Brasil para as lutas, o que a gente tem que fazer para manter a democracia, fora o que tem que fazer para proteger a floresta. Não há um dia de trégua, a gente tem que estar pronto.

Inclusive os mesmos problemas e as mesmas brigas.

É o mesmo amor. Temos que naturalizar isso. Eu acho que a nossa questão passa por isso, a gente tem sido atacado. Esse conceito de família tradicional vem a toda hora à tona para nos atacar. No ano passado nós também participamos das manifestações no Supremo Tribunal Federal (STF) pela criminalização da homofobia. Fizemos uma presença para que eles votassem a favor da criminalização. Quando lançamos a campanha, uma demanda da comunidade há muitos anos, nós fomos a Brasília e nos articularmos de todas as maneiras para que a sessão não fosse desmarcada. Participamos daquele momento de luta para conseguir aprovar, ficamos muito felizes que a gente conseguiu a maioria de votos na sessão em que estávamos. Conseguimos dar um peso, uma presença que faltava diante de uma luta que vinha de muitos anos para cá.

Foi um grande passo. Era necessária uma decisão judicial sobre isso para ter mais peso, ser mais respeitada?

Eu acho que a sociedade tende a se reeducar. E quando a gente tem uma lei clara que define o tipo de crime, faz uma diferença imensa. Eu vi isso em meu trabalho com o Unicef. Tenho 25 anos trabalhando com o Unicef, com a criminalização do trabalho infantil, que vem numa mudança radical da postura das pessoas. A sociedade só entende quando está escrito, quando está tipificado. Infelizmente tem que vir com esse tipo de instrumento de repressão para que fique claro que pessoas não podem agir desse jeito, que elas têm que enxergar de outro jeito nossa relação. E é um instrumento importantíssimo para lutas como censura. Temos reguladores na nossa vida. Essa Live do Orgulho é também para comemorar a criminalização.

É quase uma Parada.

Eu participei da Parada de São Paulo. Fiquei muito feliz, escolhi músicas mais políticas que já diziam por si. Vocês vão ver o formato da Live. Já fiz uma live contundente, meu repertório é forte, profundo. Minhas músicas todas são músicas de orgulho, de orgulho de ser baiano, de orgulho da negritude, de orgulho da nossa cultura. Eu escolhi essas temáticas desde menina, desde o começo da minha carreira. Eu escolhi gravar as músicas dos blocos afros, por exemplo, porque eram músicas políticas que traziam questões da minha cidade que me mobilizavam muito. Eu sou uma das poucas artistas que trazem essas temáticas tão fortes. As pessoas entendem o contexto do surgimento da minha música. O meu sucesso aconteceu exatamente no período do impeachment de Collor. E foi momento de cantar as minhas músicas, trazer as questões com muita percussão, falando de temas regionais, temas ligados aos blocos e ao mundo negro e da discriminação racial. Expliquei que estava trazendo um samba novo, um tipo de samba que não era conhecido no Brasil. Tinha alguns artistas com alguns trabalhos antes como Banda Reflexus, mas que não tinham entrado no mainstream da música brasileira, não tinham conseguido trazer o dinheiro. E eu anos depois continuei com o samba-reggae, quando já não era nem uma moda, ninguém mais se importava. Porque as coisas são assim, há períodos que as pessoas se interessam pela música. Não dá para explicar. O começo do Axé tem muitas especificações. É uma história muito detalhada que eu poderia ficar muitas horas contando para você. A representatividade é fundamental em tudo e eu sou baiana e trago sempre comigo as pessoas, os mestres, os blocos porque essa música política para mim sempre foi de extrema importância. Me inseri dentro do contexto musical, mas a minha música não tinha a menor tendência a fazer sucesso. Música que faz sucesso é sobre amor, que fala de temas leves. E eu gostava do repertório mais político de Caetano, de Gil, de Chico, de Elis. A minha música é mais densa mesmo, mais séria.

O meu sucesso aconteceu exatamente no período do impeachment de Collor. E foi momento de cantar as minhas músicas, trazer as questões.

Então mesmo no Carnaval dá para discutir questões sérias?

Eu estou dentro do contexto do Carnaval, mas sempre fiz minhas experiências artísticas. Fiz muitas manifestações com a obra de Jorge Amado, muitos manifestos feministas, peças de Teatro. Coloquei o Ilê e o Olodum em cima do trio. Então esse lado mais raiz da música baiana, da música brasileira, sempre fui eu que trouxe. E as antenas também trazem renovações para sacudir isso aqui, trazer informações para modificar um pouco.

Porque é também uma função do artista essa provocação, essa discussão.

Eu tenho 30 anos de carreira também fora do País e fui vendo as pessoas na Europa, os DJs começando a usar soul music, bossa nova, e aí eu comecei a fazer música eletrônica brasileira. Chamei os DJ brasileiros e falei: vamos fazer uma música rítmica, swingada. E vamos fazer um trabalho novo. Foi um super laboratório com DJs brasileiros e estrangeiros. Depois eu gravei com Fatboy Slim. E no trio-elétrico as pessoas não tinham a menor relação com a música techno, drum and bass, nada. Tanto é que em Salvador foi um contraste absurdo, eu tomei vaia no meio da rua. Mas eu fiz 10 anos de trio eletrônico direto, depois eu incorporei a linguagem eletrônica aos meus trabalhos. Então quase todas as minhas músicas já têm a linguagem absorvida desses anos de experiência de trios-elétricos eletrônicos e de álbuns eletrônicos.

E agora tudo isso estará na nossa casa no domingo? Toda essa luta e quebra de padrões estará na Live do Orgulho?

Eu estou nesta vida para celebrar a alegria, a alegria de ser casada com Malu, de ter uma família linda. E é isso que eu vou celebrar dentro de casa nessa live. É uma live cheia de cenários trazendo toda uma luta, todas as manifestações, um pouco da minha vida também. Vai ser lindo, muito singelo e particular. Além da música, além da dança, além de tudo como artista como você me conhece, Hélio. É a Daniela Mercury convidando você para falar desse assunto dentro da nossa casa em um momento muito especial, em que a gente luta pela democracia e por todas as liberdades. Ninguém vai impedir que a gente continue a nossa luta de orgulho, porque não é só por respeito, como lhe disse. A nossa luta é para naturalizar as relações homoafetivas e o nosso amor.

Para que não seja mais uma questão, que seja natural.

Para que não seja mais uma questão, que a gente não tenha que ficar falando da nossa orientação sexual. Para que isso seja tranquilo para o mundo, é o que a gente espera, mas isso vai demorar de acontecer, então vamos fazer do jeito que a gente pode a cada momento e quebrando paredes e destruindo os círculos de preconceito estrutural, que estão entre nós. Vamos desmitificando esse preconceito, vamos construindo. Porque o problema está no opressor, não está em nós. A gente tem que celebrar, ser feliz e ter orgulho. Porque o problema está nos outros, não está na gente. O problema está sempre fora de nós, mas parte está internalizado por nós na nossa cultura. Então a gente também tem que estar sempre reforçando isso. Porque como é estrutural ninguém deixa de sentir na pele, sentir no corpo, sentir no coração. A gente tem que confrontar os olhares homofóbicos continuamente em muitas das situações. Parecem sutis, mas elas não são nada sutis quando a gente se dá conta, quanto mais a gente vive. Quanto mais você prestar atenção vai ver que está em tudo. Não há uma vez que eu e Malu nos beijemos que alguém não se surpreenda. Quantas vezes as pessoas se surpreenderam de a gente segurar uma na mão da outra, dar um beijo espontâneo, uma bitoquinha porque está falando algo de amor, dar uma bitoca como qualquer casal. E as pessoas comentam, é sinal de que isso não é normal. Ainda não é normalidade para maioria. O mundo é do jeito que é, e sempre vai ter preconceito, sempre vai ter diferença, e a gente sempre tem que ficar reiterando o nosso direito de viver em paz.

Foto do destaque: Célia Santos