Força e determinação blindam Ulrick Cristiane para derrubar barreiras na Moda e na vida  

Não existe meio do caminho para a baiana Ulrick Cristiane. Não existem meias palavras. Não existe meia luta. Uma virginiana de 20 anos que ressalta a diversidade de sua cidade, Salvador. Mas também sabe que nem tudo são flores na passarela da vida e que os perigos podem inclusive vir de dentro da sua própria casa.

Com uma paixão pelo mundo da Moda crescente, hoje estudante de Moda e professora, aprende e ensina ao mesmo tempo em que se mantém alerta às ameaças para uma pessoa trans. Mas Ulrick não tem meia coragem, ela é toda determinação para derrubar muros de preconceito que ainda separam as pessoas.

A dor do sentimento de desamparo foi maior que qualquer violência física que eu já recebi.

É uma força que vem da vontade de ser plenamente ela mesma. “Acredito que o meu maior desafio foi me deparar com a rejeição familiar. Olho para todo esse trajeto e vejo onde eu consegui chegar, então ninguém é capaz de ir contra uma travesti blindada de força e determinação”, conta a seguir:

Como é a realidade LGBTQIA+ na sua cidade?

Salvador é uma cidade repleta de diversidade, seja ela de gênero ou cultural. Há muites da comunidade que circulam em pontos turísticos e eventos. Existe uma representatividade muito grande, principalmente no meio artístico. Infelizmente, passamos por violências diárias. Sejam elas psíquicas, verbais ou físicas. Ao mesmo tempo em que muites se unem para fazer revolução, outres criam rivalidade. O que acaba sendo muito chato porque poderíamos estar nos fortalecendo contra os ataques.

Ao mesmo tempo em que muites se unem para fazer revolução, outres criam rivalidade.

Quando você percebeu que a Ulrick que estava dentro de você precisava mostra-se para o mundo?

Desde que eu percebi que eu não estava sendo de fato a Ulrick que estava internalizada, achei necessário dar um passo e colocar minha essência pra jogo. Sentia que eu precisava levantar de fato uma bandeira e me posicionar. Entender que meu corpo é político e minhas ações são parte da revolução fez com que eu me motivasse a fazer parte da linha de frente da luta pela comunidade LGBTQIA+ em Salvador.

Eu só quero contornar as esquinas e mostrar que lugar de travesti é onde ela quiser.

O que você diria para as pessoas que também estão buscando sua própria verdade e enfrentam desafios?

Isso é difícil porque eu entendo as particularidades de cada ser. Sem contar que existem vivências, realidades e situações que diferem da minha. Porém eu posso dar um conselho: Vale mesmo a pena se esconder e privar sua felicidade para se enquadrar em um mundo ao qual você não pertence? Colocar os pés no chão e enfrentar o medo da rejeição e do preconceito é o primeiro passo para a afirmação de uma identidade. Quer? Corra atrás, faça acontecer e mostre pro mundo como se faz.

Infelizmente, passamos por violências diárias. Sejam elas psíquicas, verbais ou físicas.

Você sempre gostou de atuar? Foi muito difícil decidir entre a arte da atuação e as passarelas?

Sempre tive os olhos brilhando para a área das artes cênicas. O mundo teatral me ajudou a libertar meus desejos e personalidade que eu mantive ocultos. No Ensino Médio eu pretendia entrar na UFBA (Universidade Federal da Bahia) para me desenvolver na área, porém o desejo pela moda e passarelas foi falando mais alto.

O que você sente quando está desfilando?

Entendo que eu preciso viver aquilo que está me sendo proposto. É mesclar as vivências de Ulrick Cristiane, mas mantendo-se fiel ao universo daquele personagem. É o que eu trago nas minhas performances de passarela.

Vale mesmo a pena se esconder e privar sua felicidade para se enquadrar em um mundo ao qual você não pertence?

Quais os desafios você enfrentou e ainda enfrenta e como encarou/encara?

Acredito que o meu maior desafio foi me deparar com a rejeição familiar. Ter sido expulsa de casa por não querer abrir mão de quem eu sou foi a pedrada mais forte que eu já recebi. Mencionei o termo “pedrada” porque foi assim que eu fui recebida na escola quando eu mudei de instituição pela primeira vez. A dor do sentimento de desamparo foi maior que qualquer violência física que eu já recebi. Como eu perdi minha mãe cedo e não tive a oportunidade de conhecer meu pai, acabei ficando com alguns familiares que sempre resolveram os problemas na base da violência. O que acabou me fazendo ser um pouco agressiva em uma fase da minha vida. Olho para todo esse trajeto e vejo onde eu consegui chegar, então ninguém é capaz de ir contra uma travesti blindada de força e determinação.

Corra atrás, faça acontecer e mostre pro mundo como se faz

O que você pode dizer para outros que estão nesse caminho?

Só tenho que fazer com que cada ser olhe para dentro de ti e veja o potencial que tem. Não sou capaz de dizer o que se deve fazer, mas orientar em como chegar ao caminho para lá trilhar. Se eu tiver como ajudar, estarei aqui. O meu conselho é para não deixar-se abater pela maldade do mundo e correr atrás porque o que é seu, uma hora chega. É claro que nada cai do céu, então trabalhar e estudar tem que ser foco para que as coisas andem.

Ter sido expulsa de casa por não querer abrir mão de quem eu sou foi a pedrada mais forte que eu já recebi.

Como surgiu a carreira de modelo? Você enfrenta muito preconceito nesta área?

O preconceito sempre existiu e sempre vai existir enquanto houver seres com sensação de superioridade ao outro. Meu contato com a moda surgiu em 2016 quando recebi treinos e participei de um processo seletivo. Não tendo recursos financeiros para investir na área, acabei tendo que desistir. Conheci um projeto social através de uma amiga que visava a quebra de padrões e paradigmas no mercado da moda. No mesmo, comecei sendo modelo. Após receber destaque pelas técnicas e conhecimentos os quais fui obtendo, me foi proposto estar trabalhado como instrutora. Lá eu fiquei 4 anos de forma voluntária. No início, tentaram me impedir de desfilar com o salto que eu tinha colocado. Foi ali que eu bati de frente e entendi qual o meu o objetivo e papel social. Motivar pessoas para que sigam seus sonhos e confrontar o preconceito. Ainda não tem sido fácil porque uma travesti sendo professora vai incomodar muita gente. Acha que eu me importo? Eu só quero contornar as esquinas e mostrar que lugar de travesti é onde ela quiser.

O preconceito sempre existiu e sempre vai existir enquanto houver seres com sensação de superioridade ao outro.

O que você tem feito para manter a cabeça fresca na pandemia?

Seria engraçado responder se não fosse tenso. Passei por vários deslizes emocionais nesse período e perdi a cabeça diversas vezes como nunca tinha acontecido antes. Fui consumida pela ansiedade e pela depressão. Me agarrei em quem cofio e que me ajudou a superar as barreiras me manter de pé, ou pelo menos viva. Voltar a dar aula foi o que mais me colocou motivação de seguir em frente. Me senti amada e valorizada. Percebi que eu tenho um valor e preciso prezar por ele, não só por mim, mas por muites que torcem por mim.

não tem sido fácil porque uma travesti sendo professora vai incomodar muita gente. Acha que eu me importo?

Quais os projetos para o futuro quando isso passar?

Quero me desenvolver me capacitar ainda mais no mercado da moda. Busco ser destaque e referência neste meio. Assim, sei que irei alcançar novas pessoas com novos sonhos.

Qual o meu maior sonho?

O maior eu não posso falar porque está em oração para acontecer. Mas no top 3 vem a questão do renome no mercado da moda, desfilando em grandes eventos para grandes grifes e por uma sociedade que abrace mais a nossa comunidade e entenda que o ser é muito além do que aparência, é a essência.

Instagram @ulrick_cristiane