Camila Falcão usa seu talento com a câmera para empoderar o feminino – longe da sexualização comercial

Não é novidade alguma a infeliz exploração do corpo feminino nu para apreciação de muitos homens cis heteros resumida em capas de revistas, anúncios de produtos como carros e cervejas e, nesta semana, infestando os canais de televisão com belíssimas mulheres sambando em roupas também belíssimas. Pode agradar uns, mas não todos, ainda bem.

É fazendo parte desta parcela que se desagrada vendo esse uso erótico-comercial-machista-assim a gente aceita que esteja sem roupa que a fotógrafa Camila Falcão, de São Paulo, decidiu usar seu talento com a câmera para ampliar os corpos femininos – todos eles – e amplificar vozes. Trans ou cis, de vários formatos, todos humanos, nenhum erotizado para o homem cis padrão babar tomando sua cerveja no sofá.

Um trabalho que captura a imagem, mas também o sentimento de quem posa para a foto. Corpos políticos em fotografias que mostram mais do que se vê. Redes de afetos retratadas com diversidade de raças, orientações sexuais, identidades de gênero e existências. Todos lindos, todos merecedores de admiração, e não de sexualização.

Essa canceriana de 42 anos representa muitas, muitas, muitas mulheres (e homens conscientes) cansadas dessa redução erótica pelo macho padrão dominante. O feminino é muito mais do que excitação sexual, é divino como qualquer corpo humano. É a casa de uma alma de pessoas que sentem – e não se sentem bem sendo objetos de apreciação em um museu machista.

Travíssima Trindade é uma das séries de Camila

Não há uma vitrine para sua diversão hetero cisgênera prepotente, mas há sim muito para sua reflexão. “Todas as mulheres que conheço e que se envolvem com homens cis estão fudidas de algum jeito, é um sintoma do tempo que vivemos, acredito que isso precisa ser discutido, temos que achar maneiras de lidar”, conta Camila na entrevista a seguir:

Como surgiu a busca pelo feminino no seu trabalho? É uma busca sua?

É mais uma inquietação que uma busca, uma vontade de mostrar as possibilidades de expressão do feminino, que é tão rico e ao mesmo tempo tão desqualificado e reduzido pela sociedade.

Como a fotografia pode nos ajudar a construir uma sociedade menos machista, com mais respeito ao feminino?

Mostrando corpos femininos e não bináries que não sigam o padrão que o patriarcado e o capitalismo impõem, corpos que não estejam ‘preparados para o consumo’ do homem cis hétero.

Como você seleciona as pessoas que serão fotografadas? Qual mensagem você quer passar?

Depende do projeto, no “Abaixa Que é Tiro” eu entrava em contato com as pessoas por Facebook ou Instagram, às vezes amigas me indicavam pessoas que queriam posar também (ainda estou fazendo a série e não pretendo parar, mas não produzo mais tanto, quando encontro uma travesti ou mulher trans que eu ache interessante chamo pra posar, mas não é meu foco principal no momento, por isso escrevo no passado), nessa série meu objetivo é mostrar as incontáveis possibilidades de expressão do feminino no corpo trans, como sabemos que existe no corpo cis, também tentar quebrar com o estereótipo que vive no imaginário da maioria das pessoas cis em relação a esses corpos, e com isso colaborar para a construção de uma percepção mais realista do que na verdade é uma mulher trans e/ou uma travesti. A série “Across, in Between and Beyond” é sobre redes de afetos entre pessoas não bináries e algumas mulheres cis também, estou fotografando duplas justamente para mostrar a rede e as pessoas dizem com quem querem posar, por se tratar do afeto de cada um não faz sentido eu formar as duplas, comecei chamando algumas pessoas dessa rede e virou quase que uma corrente, estou repetindo personagens também para mostrar a rede.

Meu objetivo é mostrar as incontáveis possibilidades de expressão do feminino no corpo trans, como sabemos que existe no corpo cis, também tentar quebrar com o estereótipo que vive no imaginário da maioria das pessoas cis em relação a esses corpos.

Como a transexualidade entra no seu trabalho? Eu vi que você fotografa mulheres cis e trans. Qual o objetivo?

A beleza trans sempre me encantou, desde que tive os primeiros contatos com arte, fotografia e cinema, artistas que colocam o corpo trans em evidência me atraem, como Nan Goldin, Andy Warhol e Almodóvar, por exemplo, além da beleza acredito ser importante priorizar esses corpos, nossa sociedade já é cisnormativa demais e isso me incomoda mesmo sendo uma mulher cis. Desde que comecei a conviver com pessoas trans, principalmente não bináries, tem sido cada vez mais difícil me identificar com a cisgeneridade normativa, e ao mesmo tempo estou cada vez mais em paz por ser quem sou. Eu não performo a feminilidade esperada de uma mulher cis pela sociedade; não tenho filhos e nunca quis engravidar, não me depilo “como deveria”, não sou padrãzinho nem me interessa ser e se tem uma coisa que não faço questão é agradar macho cis hétero, mas nem sempre foi assim, já sofri muito com a pressão de me encaixar nos padrões. A binariedade é uma ilusão, construção do capitalismo e do patriarcado, pessoas trans sofrem uma pressão parecida com essa que meninas e mulheres sofrem, o tempo todo é dito e mostrado na mídia que o “certo”, aceitável e esperado é ser binário, homem ou mulher cis, mas a realidade é outra e vem sendo assim desde que o mundo é mundo, existe uma tentativa de reduzir as possibilidades de gênero assim como existe uma tentativa de reduzir as mulheres a um produto de consumo e/ou a corpos para procriarem, isso tudo tem que acabar, espero que meu trabalho possa contribuir pra isso. Eu fotografo mulheres cis, trans, pessoas não bináries, boycetas (amo!), bixas, homens trans…só não fotografo homens cis (só se me pagarem ou se for um amigo muito querido), não tenho interesse em mostrar esses corpos, acredito que na sociedade capitalista, patriarcal, machista e misógina que vivemos eles já aparecem demais, eu não vou contribuir ainda mais para isso.

Ainda existe muito preconceito com o nu? Os corpos ainda são policiados?

Depende, se for um corpo feminino que não seja padrão e não esteja preparado para o consumo dos hómens cis héteros tem preconceito sim, principalmente se forem fotografados/filmados/gravados por mulheres, mas se for um corpo padrãozinho nem tanto, Playboy está aí há anos.

A binariedade é uma ilusão, construção do capitalismo e do patriarcado, pessoas trans sofrem uma pressão parecida com essa que meninas e mulheres sofrem, o tempo todo é dito e mostrado na mídia que o “certo”, aceitável e esperado é ser binário.

Como mulheres cis e trans podem conquistar mais espaço para todas?

Nos unindo, mas infelizmente ainda existem empecilhos para que isso ocorra de fato, acredito que essa união acontecerá quando nos conscientizarmos que nosso “inimigo” é o mesmo, espero que esse dia esteja perto.

Se você tirasse uma foto da política brasileira hoje, como ela seria?

Prefiro não fazer.

Quem você nunca fotografaria?

Políticos de direita, principalmente a familícia e o atual ministro da Justiça.

Quais os planos futuros? Teremos alguma exposição vindo aí?

Continuar produzindo o “Across, in Between and Beyond” por mais um tempo e começar um projeto novo sobre masculinidade tóxica em breve, na verdade sobre como mulheres cis e trans, hétero e/ou bisexuais, que têm ou tiveram relacionamentos com homens cis, lidam com eles. Todas as mulheres que conheço e que se envolvem com homens cis estão fudidas de algum jeito, é um sintoma do tempo que vivemos, acredito que isso precisa ser discutido, temos que achar maneiras de lidar, algumas mulheres têm filhos com eles e precisam conviver, outras se apaixonam e sentimentos não são controláveis, portanto também têm que lidar, mas estamos vivendo em uma época que não toleramos mais diversas atitudes que até pouco tempo ainda eram aceitáveis, hoje temos uma nova consciência do que é ser mulher, do que é aceitável e do que é esperado de um homem cis em um relacionamento, e por isso a convivência tem ficado cada vez mais complicada. Sem planos para exposição no momento, tomara que role em breve, em março será lançado o segundo ano da campanha #ShowUs, uma campanha mundial da Dove + Getty Images, eu participei esse ano novamente, é um projeto que eu adoro porque é justamente sobre o que estava falando acima, mostrar corpos reais.

Instagram @camifalcao

www.camifalcao.com