Professor, pesquisador e ativista, Renan Quinalha ministra curso para reavivar a História LGBT e pensar o futuro
É impossível contar na íntegra a História LGBT, mas é possível fazer um bom panorama para aprender com o passado, analisar o presente e apontar caminhos para o futuro. É o que pretende o professor de Direito (Unifesp), pesquisador e ativista Renan Quinalha, um sagitariano de 35 anos que realiza entre os dias 5 e 10 de abril o curso “A História do Movimento LGBT” em parceria com a Associação da Parada do Orgulho LGBT de São Paulo (Apolgbt).
O conteúdo pode ser conferido na íntegra clicando aqui e visa, como define o próprio Renan, dar uma passeada por diferentes momentos históricos para o nosso movimento. Um caminho que tem, no curso, início no começo do século 19 e chega até o Brasil de hoje, que assiste a uma crescente onda de conservadorismo, obscurantismo e ódio – mesmo tendo avançado em direitos.
Além disso, Renan destaca ser importante cursos como este para reverter o apagamento e a invisibilização sofridos por nós LGBT desde sempre. “A gente tem uma História própria de comunidade, de existências, de desejos, de identidades que pode ser lida através do tempo e das mudanças. Isso é fundamental para visibilizar, iluminar, trazer essas referências”, conta na entrevista a seguir.
Por que um curso sobre a história do nosso movimento? Precisamos sempre visitar o passado que nos formou?
Eu acho que é fundamental a gente cultivar uma memória do movimento LGBT brasileiro. Não só no Brasil, mas como no mundo todo, a própria comunidade LGBT é caracterizada por um apagamento de seus rastros, da sua História. Falta às vezes referência de um passado, de pessoas que vieram antes, dessa representatividade na História. Há um apagamento e uma invisibilização muito grandes quando falamos de pessoas LGBT na História por conta da estigmatização, do preconceito da violência. Então me parece que é muito importante a gente olhar para a História e ler a contrapelo, cavando, indo atrás dessas referências, dessas existências, dessas resistências de pessoas LGBT. Importante para buscar inspiração, buscar elementos para pensar também a situação das pessoas LGBT hoje. Eu acho que é importante a gente restituir a comunidade LGBT a sua História. A gente tem uma História própria de comunidade, de existências, de desejos, de identidades que pode ser lida através do tempo e das mudanças. Isso é fundamental para visibilizar, iluminar, trazer essas referências.
Eu acho que é fundamental a gente cultivar uma memória do movimento LGBT brasileiro. Não só no Brasil, mas como no mundo todo, a própria comunidade LGBT é caracterizada por um apagamento de seus rastros, da sua História.
Como conhecer a nossa História pode fazer com que consigamos avançar enquanto movimento?
Acho que conhecendo a História a gente consegue pensar um presente e projetar o futuro também. Não é um interesse apenas acadêmico pela História que me move a realizar esse curso, mas é também um interesse ativista de pensar como muitas vezes a gente precisa conhecer o passado para não repetir os erros no futuro, pensar em melhorias de modo a avançar no futuro. A gente conhecendo o passado não quer dizer que teremos uma receita pronta sobre o que fazer no presente, de como se engajar, mas me parece que conhecendo esse passado a gente consegue pensar soluções, pensar o que deu errado, o que deu certo. Se inspirar nessas histórias de resistência, de luta, para conseguir fazer frente aos desafios que estão postos no presente neste momento do Brasil.
Qual o objetivo do curso? É interessante também para quem não é LGBT?
O objetivo do curso é basicamente compartilhar uma pesquisa que eu tenho realizado, tanto do ponto de vista ativista quanto acadêmico. Poder compartilhar essas referências, essa paixão que eu tenho por este tema, pela História do movimento LGBT, as publicações que tenho escrito sobre isso. O objetivo é passar desde o início do século 19, quando tem as primeiras iniciativas de um ativismo LGBT organizado – evidente que teve muita história de pessoas LGBT antes, mas o ativismo organizado surge no fim do século 19 e se acentua no século 20. A ideia é passar de uma maneira panorâmica por esses períodos, desde o século 19, século 20 e chegar até o Brasil de hoje. Pegando territórios específicos de organização e luta LGBT. Eu busco fazer esse curso de uma maneira acessível, sempre tem um público muito heterogêneo. Tem desde pessoas que são ativistas do movimento, pessoas que não têm nenhuma proximidade com essas discussões, que ainda estão se descobrindo. Há pessoas que têm teses de doutorado sobre o tema. Por isso fazer com uma linguagem fluida e clara, com muitas referências visuais também, dialogando com o universo da Cultura, da Música, do Teatro, do Cinema para poder enriquecer e tornar mais acessível inclusive para pessoas que não são LGBT.
Acho que conhecendo a História a gente consegue pensar um presente e projetar o futuro também.
Há uma escassez de informações sobre o nosso movimento ou temos conseguido espalhá-la como deve ser?
Ainda há uma escassez de informações sobre o nosso movimento, sobre as nossas vivências. Isso foi mudando graças à atuação do movimento, hoje se tem muito mais referências e informações, muito mais força de uma cultura LGBT que atravessa diferentes campos das artes de expressão cultural. Mas ainda falta um conhecimento mais sistemático sobre isso, como se tem em relação ao movimento feminista, ao movimento negro, por exemplo. O movimento LGBT é historicamente mais recente do ponto de vista da sua organização, então isso também contribuiu para essa maior dificuldade ainda de ampliar esse conhecimento.
Na sua opinião, quais são os três fatos históricos/conquistas que marcaram nosso movimento?
Eu pontuaria esse protoativismo, esse começo de um ativismo no fim do século 19 com o nascimento da Sexologia, que teve na Europa o foco principal naquele momento, sobretudo na Alemanha, com uma possibilidade de defesa da existência da homossexualidade como algo natural, e não uma doença, uma patologia. Isso foi muito importante para iniciar um debate de despatologização da homossexualidade. Um segundo momento importante vem nos anos 1960 com a revolução cultural do ponto de vista do gênero e da sexualidade, com o episódio de Stonewall, que seria um coroamento do processo de mudança dos papeis de gênero e de sexualidade tradicionais. Foi um momento muito rico. Houve um deslocamento importante onde o movimento adotou uma postura de maior radicalidade, não apenas de pedir assimilação a uma sociedade heteronormativa, mas de buscar uma mudança das estruturas da própria sociedade. Um terceiro momento muito relevante é quando no Brasil se organiza o Grupo Somos, em 1978, que é o pioneiro de organização do movimento LGBT brasileiro. Os ativistas se juntaram em São Paulo para começar a organizar o que se chamaria de movimento homossexual brasileiro e que viraria o movimento LGBT recentemente.
Há uma recente discussão sobre nosso movimento estar muito baseado nos EUA, ignorando as particularidades brasileiras, como nossos povos indígenas, por exemplo. Você concorda?
Sem dúvida isso existe. Acho que o campo da cultura, do conhecimento, ainda é muito eurocêntrico, ainda está muito marcado por um olhar do Norte global. Muitas vezes nós perdemos as especificidades e um olhar desde o Brasil, um olhar pós-colonial para entender os problemas que o Brasil enfrenta. Não dá para buscar as referências só lá fora como se lá a gente tivesse as respostas para a situação que a gente vive no Brasil. De fato, é uma trajetória diferente, uma sociedade e uma cultura distintas. O curso também pretende sempre fazer isso, olhar para fora e entender o que passa aqui no Brasil. Eu tento sempre fazer isso no curso, uma leitura contextualizada para que não fique essa visão de que tudo que aconteceu no Norte é o que importa, e aqui no Sul não. É preciso sim questionar e colocar uma centralidade das nossas experiências, nas especificidades do Brasil.
Qual você acredita ser a questão mais urgente a ser discutida hoje em dia?
O movimento conseguiu avançar muito nessas décadas de organização e luta, conseguiu muita visibilidade, muitos atos massivos de rua como as Paradas do Orgulho. Conseguiu uma inserção e um reconhecimento em novelas, na Literatura, em pesquisas acadêmicas. Há um crescente interesse nesse lugar das questões LGBT e muitos direitos foram conquistados do ponto de vista da institucionalidade. Mas está muito claro neste momento também, em que avança uma extrema direita no mundo todo, que a gente não conseguiu lidar de maneira satisfatória com os desafios que estão postos. Ou seja, não conseguimos, apesar de todos os avanços, acabar com a violência, com o preconceito, com a discriminação. A gente vê que agora surgem discursos de ódio contra a comunidade LGBT em vários lugares do mundo, e no Brasil de maneira bastante especial, com o governo Bolsonaro. Acho que isso nos coloca o desafio de pensar uma questão tão crônica e problemática: apesar de termos direitos e um movimento muito mais potente, muito mais organizado e capilarizado, além de direitos conquistados, a gente ainda tem um desafio de lidar com a violência. Este é um desafio.
Muitas vezes nós perdemos as especificidades e um olhar desde o Brasil, um olhar pós-colonial para entender os problemas que o Brasil enfrenta. Não dá para buscar as referências só lá fora como se lá a gente tivesse as respostas para a situação que a gente vive no Brasil.
Agora me conta seu maior sonho!
Meu maior sonho é que a gente consiga superar logo essa onda conservadora que a gente está vivendo no mundo para que possamos retomar uma trajetória de afirmação da nossa cidadania, da nossa existência, da nossa dignidade enquanto população LGBT no Brasil, em particular contra o que o governo atual vem fazendo em relação às pessoas LGBT.
Instagram @renan_quinalha