Por Hélio Filho

Eu realmente até hoje não entendi como e por que fui parar no Exército Brasileiro. Bom, eu tinha a idade para me alistar, me alistei e… fui chamado. A primeira apresentação oficial não foi em um palco, como eu gostaria, mas em uma casa-unidade-nãoseioque com um quintal enorme. Foi lá que nós, jovens de 18 anos, nos empilhamos em fileiras que eu não lembro como eram organizadas.

Afinal, tudo no Exército é organizado, mesmo que seja uma organização não muito produtiva, como eu pude observar de perto depois. Mas nessas filas estávamos nós, aqueles jovens que a propaganda da televisão chamava para servirem à pátria amada. Não era a minha onda/viagem/vibe, definitivamente. Nunca foi, em momento algum eu senti vontade de fazer parte do universo militar – como alguns sentem e são apaixonados por isso.

Capricorniano que sou, adoro regras e sistemas a serem obedecidos, mas isso não significa opressão, somente praticidade mesmo. Eu sabia, mesmo do lado de fora, ainda, que as regras que regem o serviço militar são duras, inabaláveis e por muitos, muitos anos imutáveis. Teria espaço para me tolerar?

Aos 18 anos eu tinha acabado de passar no vestibular para esse tal de Jornalismo aí. Era o meu foco. Mas a pátria amada ardia de desejo por mim, esta só pode ser a única explicação, porque eu – em todas as entrevistas – sempre disse que era gay. “Acabei de passar no vestibular em universidade federal, gratuita, não posso servir. Sou homossexual.”

Eu sabia, mesmo do lado de fora, ainda, que as regras que regem o serviço militar são duras, inabaláveis e por muitos, muitos anos imutáveis. Teria espaço para me tolerar?

Foi o discurso em absolutamente todas as minhas conversas pré-recruta. Em nenhuma delas me deram ouvidos, e eu imaginando que talvez não fosse bom sinal. Essa tolerância poderia ser a cortina de fumaça para uma opressão futura, uma forma de castigo por ser viado. Mas então por quais motivos me convocar?

Nunca, nunca, nunca saberei como mesmo sendo gay assumido, tatuado e universitário me enviaram uma carta pedindo para me apresentar tal dia e tal hora no hospital do Exército na cidade onde eu morava, em Campo Grande (MS). Fui, repeti meu discurso de sou viado me deixa de fora dessa quero estudar – e não deu certo, de novo. Ouvi do subtenente que precisavam de mim justamente por ter certo nível escolar, qualificações e carteira de motorista (mal sabia ele que poucos dias depois eu destruiria o teto da UTI manobrando a ambulância).

E lá fui eu logo depois do Carnaval de 2003 me apresentar, agora sim, como recruta do Exército Brasileiro, braço forte, mão amiga. Como todos recebiam um número, por ordem alfabética, o meu bateu na trave e foi 23, não 24. O cabelo raspado eu já tinha adotado depois do trote da faculdade, era hora “apenas” de mudar o dresscode para verde-oliva camuflado de tecido grosso socorro era horrível feelings.

Logo de cara eu ouvi um “essa Fanta é uva” e, como não tinha nada a esconder, não poderia ter mostrado mais do que já tinha mostrado até ali, virei e respondi que a Fanta era uva sim “e eu falei isso para todo mundo aqui desde o começo, mas ninguém me ouviu e me colocaram aqui. Sou viado sim”. Foi assim que começou minha amizade super bacana com o Ben-Hur, que disse ter se tornado meu amigo justamente pela minha coragem.

Essa tolerância poderia ser a cortina de fumaça para uma opressão futura, uma forma de castigo por ser viado. Mas então por quais motivos me convocar?

Nossa, que corajosa ela, vai pensar alguém. Amore, experimenta não ser tão másculo assim em um lugar onde você é acordada, querida, todos os dias com um fuzil batendo na beliche e alguém gritando “alvorada!” no mais tardar às quatro da manhã. Tudo é gritado, mandado, rude. O mundo gira e o soldado se vira, eles dizem. E você que se adapte ou pague as consequências.

Eu me adaptei do meu jeito. Então muitas são as histórias que eu tenho para contar sobre os nove meses (saí na primeira baixa, ufa) que passei por lá. Nada que ofenda o Exército, nenhum crime, nada que mereça capa de jornal. Somente minhas histórias mesmo. Recruta rosa, totalmente. Muitos foram os clichês, várias foram as broncas por eu ser diferente dos outros.

Mas eu me sinto muito feliz porque tive ensinamentos enriquecedores e observei exemplos que nunca seguirei. Em momento algum eu me camuflei, somente nas aulas que a gente tinha no acampamento quando eu fazia corações na bochecha em vez de me disfarçar para sumir na mata. “Você tá louco, recruta?” era uma das frases mais recorrentes.

Ouvi do subtenente que precisavam de mim justamente por ter certo nível escolar, qualificações e carteira de motorista (mal sabia ele que poucos dias depois eu destruiria o teto da UTI manobrando a ambulância).

A minha sorte foi ter discernimento para saber separar as coisas, me manter firme sendo eu mesmo e conseguindo conquistar o respeito das pessoas à minha volta – mesmo sendo “pederasta”, e “pederastia” no Exército é nada menos do que crime. Eu fui um criminoso? Acho que não, saí de lá com duas menções honrosas que guardo até hoje, na mesma estante da minha mini bandeira do arco-íris.

Só não guardei nenhuma foto. Mas verde-oliva não me caiu bem mesmo.