Perto ou dentro de nós mesmos
Por Breno Rosostolato*
Desde que o mundo é mundo vivemos entre anjos e demônios, onde monstros foram criados e designados assim pelo momento histórico e cultural de cada época. As dicotomias como – bem/mal, bom/mau, céu/inferno, certo/errado – os monstros emergem e se desviam das normatizações e confrontam uma das mais complexas dualidades, Natureza e Cultura.
O monstro afirma-se no poder através do ‘Eu’, ou seja, não se alimenta nem da Natureza e nem da Cultura, mas é estereotipado pelas duas. Foucault, filósofo francês (1926-1984), já refletia que ‘o que define o monstro é o fato de que ele constitui, em sua existência mesma e em sua forma, não apenas uma violação das leis da sociedade, mas uma violação das leis da natureza’.
Monstro, termo latino, podendo vir tanto de ‘monstra’ que significa ‘mostrar, apresentar’, quanto de ‘monstrum’, ou seja, ‘aquele que revela, aquele que adverte’. O que possui de assustador, o monstro desperta fascínio e admiração, pois é em si transgressor. Transgride a lei e as normas, cujas bases são fundamentais para a ciência e o discurso médico definir o que seria normal e saudável. Eis o monstro desviante.
Desde que o mundo é mundo vivemos entre anjos e demônios, onde monstros foram criados e designados assim pelo momento histórico e cultural de cada época.
Já o discurso jurídico determina o que seria o legal e correto e apresenta o monstro como ilegal e ilegítimo. E a religião apropria-se de seus monstros para afirmar a lei divina, incontestável, em detrimento do monstro bestial e execrável.
Oras, mas assim é o monstro. Autônomo e não padronizado. Relutante às determinações. Um contumaz questionador e transgressor. Transita na história, porque as sociedades elegem seus monstros à medida que não conseguem explicar suas dúvidas.
Se o monstro é aquele que mostra e revela, qual seria, portanto, sua monstruosidade? O crime é a própria existência. E assim os monstros são ocultados, senão, eliminados. Perseguidos, os monstros se não estavam em cavernas e grutas, deveriam permanecer o mais distante das pessoas. Se eliminados, eram motivo de premiações, assim como os dragões, que se fossem eliminados davam ao cavalheiro prestígio e soberania.
Monstros se diferenciavam do homem pelo corpo assustador, deformado e que despertava também curiosidade. Fosse a Medusa, figura mitológica e amedrontadora por petrificar todos que ousassem olhar em seus olhos. O Lobisomem e sua transformação animalesca em dias de lua cheia. Seriam os monstros representações do quê?
A cultura, atuando no campo do conhecimento antropológico e utilizando os símbolos e sinais, fábulas e devaneios, explica os fenômenos da Natureza, o monstro compõe os mitos. Foge da realidade. Uma dualidade baseada no racional/irracional.
É com o surgimento da religião judaico-cristã que a monstruosidade transita do corpo para a alma e os monstros passam a ser malignos, diabólicos e os pecados formariam os monstros sexuais.
Daí os mecanismos severos e punitivos da sexualidade, pois, prazer e o desejo seriam provocadores da ‘danação divina’, ou seja, aproximaria a alma humana do diabo e da bestialidade. E a relação entre monstros e humanos revela mais uma dicotomia social – o divino e o profano – Deus e diabo.
É nas mulheres que o profano é associado. O ser que desperta os desejos mais profundos. É na Idade Média que a violência ao ser feminino atinge seu ápice e a caça às bruxas, monstros da feitiçaria, são perseguidas e sumariamente jogadas na fogueira da Santa Inquisição. Caça às bruxas que acontece ainda nos dias de hoje. E antes de eliminá-las era comum profanar o corpo pecaminoso.
É a partir do século 19, com o advento do pensamento científico e a medicina ditando aquilo que é ‘normal’ e o ‘anormal’ que os monstros são reinventados, na mente. O que o psicanalista Sigmund Freud (1856-1939) denomina como Unheimlich, palavra alemã para ‘estranho’ ou ‘sinistro’, mas não no sentido repressor e, sim, a inquietude do monstro que a Cultura tenta sucumbir, encobertar e ocultar, é revelado. Os monstros são anômalos, deformados e doentes. Os ‘ismos’ tomam conta das identidades e surgem na literatura catálogos descritivos de patologias.
Os monstros são anômalos, deformados e doentes. Os ‘ismos’ tomam conta das identidades e surgem na literatura catálogos descritivos de patologias.
Os erros da Natureza são denominados, homossexualismo, lesbianismo, travestismo e transexualismo, acompanhados de seus respectivos ‘ismos’. O profano metamorfoseia para o degenerado e as perversões sexuais, patologias. E este é cenário para os anos que se seguem. Os monstros sociais são categorizados como ‘minorias’ por uma maioria elitista, branca, machista, heteronormativa e cisgênera. Uma minoria marginalizada e estigmatizada. Corpos abjetos, invadidos e abusados. Corpos, culturas, crenças, desejos e identidades desrespeitados e violentados.
As discrepâncias entre o padronizado e o desajustado são o retrato das injustiças sociais. Monstros que fazem parte de uma massa, eleitos por uma equivocada maioria elitizada, que estabelece que tudo pode ser comprado. Uma espécie de ‘eugenia capitalista’, uma ‘pasteurização’ dos monstros sociais sustentados no binarismo ricos/pobres, negros/brancos.
As discrepâncias entre o padronizado e o desajustado são o retrato das injustiças sociais. Monstros que fazem parte de uma massa, eleitos por uma equivocada maioria elitizada.
Os monstros sofrem influência dos desígnios e pressupostos e a Natureza determina a Lei. O cenário se configura desta maneira e deve-se seguir o percurso natural da constituição corporal e sexual. A intolerância é a nova norma. Não basta se afastar do monstro, mas extingui-lo.
A gordofobia é o medo da monstruosidade de não ser aceito em uma sociedade que estabelece padrões de beleza. O racismo e a intolerância religiosa, o primeiro, herança colonizadora; o outro, a continuação de mentalidades arcaicas e medievais.
Assassinam transexuais, travestis e homossexuais. Casos de intersexualidade têm seus corpos coisificados e exotificados. O que define o normal é ter XX ou XY. O lesbianismo e a bissexualidade desrespeitados. E quanto às mulheres que não conseguem engravidar por motivos genéticos ou porque não querem? A Natureza também consideraria como anomalias? E agora, a família deve ser ‘tradicional’ e enquadrada nas normas heteronormativas, senão, monstruosidades.
Claude Kappler (1986) refletiu sobre o paradoxo existencial entre homens e monstros, pois, ‘para o homem normal, os monstros são, antes de mais nada, formas diferentes dele mesmo’. Fato é que os ditos monstros nos mostram o quão hipócrita e preconceituoso somos. O quão destrutivos podem ser a Natureza e a Cultura.
Concordo com o professor e antropólogo Jorge Leite Jr. quando diz que ‘destruir um monstro é nos tornarmos monstros tão ou mais terríveis do que aquele que queríamos eliminar’. E convenhamos, todos nós possuímos um cramulhão e, parafraseando o professor: ‘Monstros somos nós’.
*Breno Rosostolato é psicoterapeuta, educador e terapeuta sexual, professor universitário e pesquisador sobre violência de gênero, identidade de gênero, orientação afetivo-sexual e masculinidades. É um dos responsáveis pela LovePlan, empresa especializada em relacionamentos.