“O Beijo no Asfalto” é de 1960, mas rendeu um filme atual sobre a hipocrisia da sociedade brasileira
A atualidade de Nelson Rodrigues é desoladora. O frescor das surpresas que ele causou abrindo as cortinas da vida privada no século passado é inquietante. No Brasil de 2022, qualquer de suas obras continua relevante, com “O Beijo no Asfalto” não é diferente. Ainda somos a mesma sociedade que aponta, julga, se guia pelo preconceito e critica antes de saber ezatamentchy o que dizer.
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Há uma maravilhosa profusão de montagens da obra, mas vamos pegar o filme de 2018 como norte porque traz também um material rico de comentários, adendos e interpretações das falas (inclusive com a rainha Fernanda Montenegro). O grupo reunido em volta da mesa vai além da leitura dramática e faz algo parecido com o que hoje se chama versão estendida.
Na versão dirigida por Murilo Benício, Lázaro Ramos é o mal falado Arandir, que cai na boca do povo depois de beijar na boca um homem que agonizava após ser atropelado. Casado com Selminha (Débora Falabella) e cunhado de Dália (Luiza Tiso), ele é genro de Aprígio (Stênio Garcia) – responsável por dar à filha a notícia de que o marido dela pode ser mais do que aparenta, ou seja, pode ser viado.
Tudo poderia ser explicado com calma não fosse a voracidade da imprensa retratada pelo repórter Amado Ribeiro (Otávio Müller), que deveria se chamar Armado, já que não dispensa munição para cima de Arandir. Quer tirar do beijo no asfalto no Centro do Rio de Janeiro um escândalo para acobertar outros assuntos.
Promove com a ajuda da polícia uma verdadeira caça às bruxas, uma perseguição extremamente homofóbica em um tempo (1960) onde este nome nem existia. O mérito de “O Beijo no Asfalto” é não perder nada ao longo do tempo: a homofobia se manifesta das maneiras mais diversas e sutis; muitas são as camadas onde estas violências ocorrem; poucos se importam com a explicação.
Um simples beijo em um homem que agonizava se torna o começo de um inferno na vida de Arandir – como tantos outros fatos cotidianos que são usados pelos intolerantes para argumentar sua razão descabida. Todo LGBT+ é um pouco Arandir porque já foi questionado, interrogado, prescrutado, revirado do avesso para falar algo que alguém quer ouvir.
Mas Arandir não se rende à manipulação psicológica da polícia amparada pela Imprensa. Não quer seguir a versão criada pelos policiais de que ele e o homem morto no atropelamento se conheciam, na verdade eram amantes. Ele insiste que está falando a verdade. Mas quem acredita no viado?
Com montagem dinâmica e rica de Pablo Ribeiro e fotografia de Walter Carvalho, “O Beijo no Asfalto” de 2018 (terceira versão cinematográfica) pula facilmente de 1960, quando foi escrita, para 2022. Porque ainda precisamos interromper o looping eterno da hipocrisia – Nelson Rodrigues faz isso no final dessa História. Que é tão internacional a ponto de ter recentemente seus direitos adquiridos pela poderosa Viola Davis.
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