Thamirys Nunes transformou em livro e militância a experiência de ser mãe de uma menina trans de 6 anos
Não há nada no mundo maior que o amor de mãe. Não há obstáculo no mundo instransponível para elas. Não há abnegação maior em qualquer pessoa. É o que prova Thamirys Nunes, 31 anos, mãe de uma criança trans de 6 anos, Agatha, que transformou esta experiência em referência para outres pais e mães após perceber que ainda falta (muita) informações sobre o tema.
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Após o primeiro momento de aceitação da transgeneridade da filha, em 2019, Thamirys conta à Ezatamag que em 2020 lançou seu primeiro livro, “Minha Criança Trans?: Relato de uma mãe ao descobrir que o amor não tem gênero” (compre clicando aqui). O preconceito do mercado editorial impede que a obra entre nas livrarias, mas a autora conta com a força da internet para espalhar sua experiência e já conseguiu vender 800 exemplares.
Atualmente morando em Curitiba, é formada em Comunicação Social e coordena a área de proteção e acolhimento à criança e adolescente LGBTI+ da Aliança Nacional LGBTI+ e do Grupo Dignidade. Uma atuação que inclui também grupo de apoio de pais e mães e uma militância incansável por direitos infanto-juvenis trans, por um futuro onde sua filha possa ser feliz – o desejo de todas as mães – e viva mais do que a triste expectativa média de vida de 36 anos.
Você enfrenta muitas críticas por falar sobre crianças trans?
Muita gente não gosta que eu trabalhe com o livro, tenho vários problemas por causa do tema. Não consigo entrar em nenhuma livraria, eles não aceitam. Então é muito difícil. Mesmo assim, somente no boca-a-boca, pela internet, eu já vendi mais de 800 exemplares em um ano.
Isso reflete o preconceito do mercado editorial.
Sim. Infelizmente é um preconceito muito grande.
Quando você começou a pensar que além de viver essa experiência você deveria escrever um livro? É para falar com outras pessoas?
No ano passado eu fiquei bem depois de ter passado por um ano muito difícil. A situação em torno da minha filha aconteceu em 2019, depois foi muito difícil. E quando eu fiquei bem eu achei que precisava compartilhar isso com as pessoas. Daí veio a ideia de escrever o livro.
É uma ajuda para outres pais e mães também entenderem esse processo com seus filhes. Você teve alguma referência sobre como ser mãe de uma criança trans?
Não, em nenhum lugar. A gente aprende a trocar fralda, a gente escuta sobre o cocô, o xixi, mas e se for trans? Ninguém fala. Quando eu comecei a falar mais sobre isso, não tinha ninguém que falasse disso, especificamente de criança. Eu estava muito sozinha. Foi incrível porque eu achei que eu ia falar para ninguém, e outras mães começaram a me procurar. Hoje a gente tem um grupo muito forte de mães. Isso me fortalece porque a gente vai construindo espaços, pontes, para trazer direitos aos nosso filhos, que é o que a gente quer.
Muita gente não gosta que eu trabalhe com o livro, tenho vários problemas por causa do tema. Não consigo entrar em nenhuma livraria, eles não aceitam.
E você sente um feedback mais de pais e mães procurando essas informações?
No meu perfil, por exemplo, é muito variado. Eu acabo fazendo muitas aulas em faculdades de Psicologia e Pedagogia. Meu público varia entre os pais de crianças, adolescentes ou pessoas trans adultas até, e alguns profissionais que trabalham com crianças e adolescentes e querem entender melhor esse movimento que é a transgeneridade infanto-juvenil.
Antes de acontecer dentro da sua casa, você tinha contato com o movimento LGBT? Como você lidou com essa descoberta?
Não. A minha vivência era extremamente cis-hetero-normativa. Eu não tinha nem amigos, nem conhecidos LGBT. A primeira pessoa trans que eu conheci foi a minha filha. Eu lidei com isso no dia-a-dia. Eu não tinha como olhar para o amanhã, eu tinha que trabalhar o que eu tinha hoje. Foi pedacinho por pedacinho, não tinha o que fazer. Eu tinha uma criança em sofrimento e não queria que minha criança sofresse, então eu tinha que dar um jeito para ficarmos bem. E foi indo de pouquinho em pouquinho, diariamente. Não aconteceu do dia para a noite, como se fosse um interruptor que virando a chave fica tudo bem.
Essa é uma orientação valiosa. Às vezes pais, mães, a família da pessoa trans, acham que está tudo pronto, que será um processo rápido.
Não. O nosso amor se adapta, falo isso para as mães que me procuram. O nosso amor se adapta, mas é dia-a-dia. Eu por exemplo senti muita dificuldade para sair da terminologia filho e ir para filha. Eu fui encontrando opções no meio do caminho que foram me ajudando a chegar nesta adaptação. Eu fiquei um bom tempo chamando de “amor”, que não é nem feminino e nem masculino. Tem mães que usam “meu bebê”, “ser humaninho”, acabam sendo muito criativas nisso. Todo mundo tem que se esforçar um pouquinho, mas também não pode ser um sofrimento intenso. Um cede de um lado, o outro cede de outro e a gente vai se adaptando a essa nova realidade da família. Porque quando uma criança ou um adolescente transiciona, a família inteira transiciona junto. Muda o olhar daquela família sobre a sociedade, sobre o mundo, sobre o que é o futuro. As coisas se modificam. A pessoa não transiciona sozinha. É um movimento dos pais também, a gente muda com ela.
E o que você fala para pais e mães que estão percebendo que seus filhes são pessoas trans?
Eu acho que a base de tudo é o diálogo, os nosso filhos precisam saber, a gente precisa reforçar com eles, que independente do que aconteça a gente estará ali. Os nosso filhos precisam saber que eles podem sempre voltar para casa. Isso é a primeira coisa que a gente tem que fazer. Em um segundo momento, buscar informação. O melhor aliado de um pai e de uma mãe é a informação. A partir do momento em que esses pais estão fortalecidos com conhecimento, eles sabem se defender e defender seus filhos. Consequentemente, ensinam os filhos a se defenderem. Eu, no momento inicial da transição da Agatha, não tinha quem me orientasse. Passei por diversas situações de violação dos meus direitos e dos direitos dela e eu achava que tudo bem. Que por ter uma filha trans as pessoas iam fazer aquilo comigo. Hoje eu já sei que não. Se alguém tentar violar um direito dela eu sei me posicionar, eu sei barrar isso. A informação é o passo número dois. O passo número três é buscar apoio. Não é fácil, não adianta. Não vou te dizer que a transição de um filho é OK e a gente lida normalmente. É uma transição que mexe com o nosso emocional, ela mexe com os nossos sonhos, com muita coisa até que está no subconsciente e a gente não entende. Busque apoio, de profissionais, de grupos voltados para isso. Se fortaleça com pessoas que estão do seu lado, dividindo esse sentimento.
E como você tem preparado a Agatha para enfrentar os desafios de ser uma pessoa trans?
Eu trabalho a autoconfiança dela. Quando acontece alguma coisa eu deixo claro que não é ela a responsável. Eu coloco muito bem isso para ela. Claro que quando ela erra a gente pontua, mas quando ela é vítima de um bullying, de uma gracinha, de um constrangimento, eu deixo muito claro que este constrangimento não é por ela ser quem ela é, é porque o outro é ruim. É porque o outro não sabe ser bom.
Eu acho que a base de tudo é o diálogo, os nosso filhos precisam saber, a gente precisa reforçar com eles, que independente do que aconteça a gente estará ali.
Você usa muito seu perfil para a defesa dos direitos da criança trans. Temos legislações como o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), mas este este assunto ainda está muito cru no Brasil. Qual é o desafio para mudar isso?
Acho que a gente tem que naturalizar a existência delas. Utopia será o dia em que nossa sociedade entenda que tudo bem ter uma criança trans, tudo bem ter um adolescente trans. A gente precisa naturalizar isso porque é um processo natural, não foi algo que a mãe comeu, bebeu, ouviu durante a gravidez. É natural, não é uma doença. Nosso maior desafio é combater a desinformação e o preconceito para nasturalizar a existência dos nosso filhos. Quando a gente tiver isso muito natural, vai ser mais fácil.
Ainda precisamos que Ministério da Educação (MEC), secretarias de Educação, todo esse sistema educacional, se adapte também a essa questão.
A gente não tem nenhum marco normatizador de direitos das crianças e dos adolescentes trans. Temos o ECA, mas dentro dele existem várias lacunas sobre as crianças trans. Falta isso ainda. O MEC reconhece o nome social, mas não dá nenhuma punição para a escola que não segue isso. Temos Estados que criam subregras mediante às regras do MEC para que as crianças não possam usar o nome social, que seja uma regra só do adulto. Um marco regulativo faz falta, porque quando não tem nenhum marco fica no bom senso. E a gente não pode contar com o bom senso do outro. Quando é direito, não tem bom senso, é direito e acabou.
Qual o seu maior sonho?
É a Agatha fazer 36 anos.
Instagram: @minhacriancatrans