Coletivo de Campo dos Goytacazes ganha as ruas para conquistar mais espaço e respeito para LGBTQI+

O ditado a união faz a força nunca fez tanto sentido quanto para descrever o coletivo POCS – Pensar, Ouvir, Criar e Sentir. Surgido há menos de um ano na cidade de Campo dos Goytacazes (RJ), já provoca uma necessária movimentação nas discussões sobre gênero e sexualidade com atividades culturais e acadêmicas e muito apoio a quem sofre preconceito.

Em entrevista à Ezatamag, os coordenadores Quimera e Tayna contam que o número de coordenadores saltou de oito em 2019 para 16 membros para atuar em 2020. Uma equipe que terá muito trabalho pela frente para construir espaços de convivência e combater violências e preconceitos.

Problemas identificados por Quimera e Tayná em uma pesquisa de um projeto de extensão ligado à Universidade Federal Fluminense que hoje se espalha pelas ruas da cidade. “Todos os entrevistados, ao longo da pesquisa, apresentaram ter sofridos diferentes violências em relação a gênero e sexualidade”, conta a dupla na entrevista a seguir:

Me conta como surgiu o coletivo, desde quando ele existe?

O coletivo nasceu no ano de 2019, mais precisamente em abril. Surgiu por meio de um projeto de extensão ligado à Universidade Federal Fluminense. Eu, Quimera, em conjunto da companheira Tayna, escrevi um projeto que visava arte, cultura e educação para a população LGBTQI+ de Campos dos Goytacazes (dentro e principalmente fora da Universidade). Tudo começou com minha pesquisa sobre violência de gênero e sexualidade na cidade de Campos. E o resultado da pesquisa mostrou a falta de espaços, serviços e sociabilidade segura para esta população. Todos os entrevistados, ao longo da pesquisa, apresentaram ter sofridos diferentes violências em relação a gênero e sexualidade. Logo, em contraposição a esses dados, pensamos na criação de espaços que visassem o fortalecimento e empoderamento da cultura e das pessoas LGBTQI+. Ao longo do tempo nos percebemos enquanto coletivo. Todes os coordenadores que toparam participar do mesmo foram ativos e importantíssimos para o andamento do projeto/coletivo. Nos tornamos uma família, mesmo com nossas particularidades. Aprendemos juntes, tanto sobre o tema, quanto a fazer coisas que não éramos habituados (arte, organização) e a viver em coletivo. E além destes, recebemos apoio de colaboradores que sempre fortaleceram nosso trabalho (advogado, professores, pedagoga, fotógrafos, artistes).

Por que vocês sentiram a necessidade de criá-lo? Ainda há muito a ser feito em Campos dos Goytacazes?

Com a pesquisa realizada sobre violência de gênero e sexualidade, as pessoas relataram sofrer violência ao acessarem serviços de saúde, educação, espaços de lazer e entretenimento, sempre no aspecto de negação de suas corpas. Além disto, violências familiares. Dentro desta perspectiva, percebemos que sim, há muito o que se fazer e discutir ainda na cidade de Campos. Além do debate de gênero e sexualidade, essas corpas ainda são atravessadas pelo racismo, misoginia, por fatores de classe, gordofobia e etc. Nesse período, na cidade de Campos, os movimentos ligados ao tema se encontravam um tanto inativos, percebemos a necessidade de criar espaços para debatermos todas essas demandas e para fortalecimento de nós mesmos. Sim, por ser uma cidade conservadora e uma das últimas cidades a abolir a escravidão, ainda hoje sentimos os reflexos deste passado. Há necessidade de resistir e transformar nossas vivências nesta cidade.

Como a arte ajuda nesse processo?

A arte é uma grande aliada neste processo, é a transcendência das corpas, das vozes, das artes. Através dela alcançamos os outros e a nós mesmes, ouvimos e somos ouvidos, aprendemos e ensinamos, expressamos alegrias e dores. Com ela, nos permitimos sentir e também criamos nossas próprias histórias. Além de valorizar nossa cultura e nossas artes individuais e coletivas em um mundo que procura nos sucumbir. Mergulhamos no caótico e o manipulamos para dizer que somos corpas de criação e de difusão.  A arte nos aproxima, e não tem nada mais valoroso do que se sentir acompanhade. Tanto que nosso lema é: POCS – pensar, ouvir, criar e sentir. Nosso grito no SLAM das Pocs: pensando: em estratégias de sobrevivência diariamente, ouvindo: nossas regras sobre os nossos corpos estamos. Criando: resistência nos permitindo Sentir. Realizamos o SLAM das POCS, primeiro SLAM com protagonismo LGBTQI+, com ele criamos espaços de desabafo e acolhimento entre nós. Fizemos oficinas de performance e escrita marginais em escolas e na Universidade. Percebemos que nas escolas de ensino médio as pessoas procuravam compreender melhor as questões de gênero e sexualidade e com eles construímos poesias coletivas, que se tornarão nosso manifesto coletivo.

Coletivo percebeu a necessidade de criar espaços para debater as demandas

Quais foram os maiores desafios que vocês encontraram?

No começo, logo no primeiro evento dentro da Universidade, fomos convidades a estar levando nossa roda de conversa para uma sala de aula, longe da visibilidade do pátio, lugar escolhido para a apresentação do projeto. Só conseguimos ocupar o pátio porque uma professora topou supervisionar o evento, também fomos muito relutantes a aceitar essa “volta pro armário”. Outro desafio foi a falta de investimento da Universidade no projeto, tivemos que vender comida, brechó, passar livro de ouro entre alunos e trabalhadores para conseguirmos dar conta de todos os eventos que realizamos. Não tínhamos os materiais necessários para realizar todes as ideias que queríamos, mas recebemos apoio de algumas pessoas que foram fortalecendo nossa caminhada. A falta de dinheiro nos impossibilitou de fazer articulação com artistes de outras cidades, o que gostaríamos muito de ter feito. Trazer artistas, pesquisadores e trabalhadores da área de gênero e sexualidade para nossa cidade e também levar nossos artistes, pesquisadores e trabalhadores para outras cidades. Acreditamos na força das articulações com os nossos.

Quais atividades vocês realizam? Elas são abertas a todes?

Sim, são abertas pra todes, desde que a pessoa não tenha ódio no coração e nem nas ideias. Realizamos o SLAM das POCS e o chá das POCS mensalmente. O SLAM é uma batalha de poesia falada e performada, mas o nosso transformamos em uma roda de poesia em que todos os participantes ganham por estarem presentes, pois entendemos que estar ali na frente de todes já é ganhar. O chá das POCS é uma roda de conversa em que todo mês tem uma temática diferente, por exemplo: mercado de trabalho (com oficina); acesso à Universidade (aulão de revisão para o Enem); saúde (ginecologia natural, tratamento hormonal, violência obstétrica, Ists, acesso ao Sus); como é ser LGBTQI+ no atual cenário político e na cidade de Campos dos Goytacazes (com conversa acompanhada de letras de músicas e vídeos); cinema queer (apresentação fílmica de vídeos, curtas e discussão). Todos os temas giraram em torno de gênero e sexualidade. Para além disto, fomos em escolas de ensino médio, pública e privada (com oficinas, roda de conversa e pocket do slam); participamos de feiras de impressões (com colagens e prints LGBTQi+); apresentamos performances em eventos culturais; estivemos na UAI – Unidade de Acolhimento Infanto Juvenil; participamos de um documentário organizado por alunes de uma escola da cidade. Todes os nossos eventos são gratuitos e todes os convidades e participantes recebem certificado.

Como vocês conseguem dinheiro para realizar os projetos? Quem quiser pode ajudar de qual maneira?

Quem quiser pode ajudar doando qualquer valor, é só entrar em contato com a gente. E também podem ser colaboradores do coletivo, à distância ou de forma presencial, basta nos procurar. Podemos estar pensando juntes em formas de trabalhar juntes. Conseguimos dinheiro através de livro de ouro, que passamos entre professores universitários e nos eventos que participamos, vendemos comida, brechó, nossas artes e zines em feiras.

Grupo produz materiais levantando discussões sobre gênero e preconceito

O que mais incomoda o coletivo na sociedade em que vivemos?

O preconceito para com as nossas corpas. A intolerância e a ignorância que gera violência. A deslegitimação das nossas corpas, ideias, trabalhos, pesquisas e artes. Os espaços que nos são negados, a falta de políticas públicas eficientes para nossa população. O apagamento de nossas histórias, cultura e vivências.

Para finalizar, um recado direto e reto para os preconceituosos:

“Vão ter que nos engolir, estamos passando com força e navalha na boca”

“Acabou pra você, nós tamo organizado

E já tamo até fazendo a revolução  (das corpas)

É guerra que tu quer?

Minha navalha tá na boca

Mexe só com as bixas

Ce vai ver quem é Deus

E o quanto sua mão pesa

Deus? É travesti, não binárie, trans, sapatão, bixa, bi, queer…

Minha imagem e semelhança”

Trecho poesia de Quimera Profana.

 

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