As camadas culturais, políticas e religiosas muito antigas e sedimentadas contra a discussão de gênero
Por Fe Maidel*
Procuramos aqui acompanhar a trajetória e os meios pelos quais o termo “gênero” passou a ser agregado às discussões da Organização Mundial da Saúde (OMS) referentes a direitos sexuais e reprodutivos, os fatores que atuaram para a radical mudança no tom das discussões a nível global sobre o tema e estabelecer como se deu a atuação da Igreja Católica e de movimentos conservadores ao redor do mundo em relação à pauta de “gênero”, buscando identificar como estes atores influenciam os posicionamentos globais em relação à essa questão.
Os debates envolvendo sexualidade e sua legitimação como uma questão de direitos humanos vêm evoluindo desde que a Organização Mundial da Saúde, em 1972, estabeleceu as bases para o Programa Especial de Pesquisa, Desenvolvimento e Treinamento em Pesquisa em Reprodução Humana (HRP). As discussões, que inicialmente giravam em torno de políticas antinatalistas e da dignidade humana, tinham a oposição dos movimentos conservadores e da Igreja Católica. Esta publicou documentos defendendo suas posições conservadoras, em que vincula a “verdadeira promoção da dignidade do homem” à lei inscrita pelo próprio Deus”. (3) e se posicionou contra as políticas anticoncepcionais, afirmando que “É de notar que o uso dos contraceptivos, insistentemente propagados nos nossos dias, contrasta com estes ideais cristãos e estas normas morais das quais a Igreja é Mestra.” (3).
Uma vertiginosa evolução nas discussões na década de 1990 foi possível graças à abertura que o sistema ONU propiciou à participação de organizações da sociedade civil e a presença política de atores na política sexual. As discussões, à medida que avançaram, provocaram profundas influências nas agendas mundiais (1). Contrapondo-se a esse movimento, os conservadores e a Igreja Católica passaram a exercer uma postura mais agressiva e atuante a partir dessa abertura das Nações Unidas.
Uma vertiginosa evolução nas discussões na década de 1990 foi possível graças à abertura que o sistema ONU propiciou à participação de organizações da sociedade civil e a presença política de atores na política sexual.
A discussões da Conferência do Rio, em 1992 tiveram como base a clássica definição de igualdade entre os sexos e o ponto de tensão nas negociações se deu com a introdução pela OMS dos temas “direito ao planejamento familiar” e “saúde reprodutiva”, suscitando manobras e ataques por parte dos representantes do Vaticano, que buscou diminuir o espaço da pauta feminista referente à autonomia reprodutiva. Estas, por sua vez, perceberam que, para evitar uma perda de enormes proporções, seria imprescindível influir sobre a agenda da Conferências de População e Desenvolvimento (CIPD), programada para 1994, no Cairo (1).
A palavra “gênero” passou a ser incluída nas discussões acerca dos direitos sexuais e reprodutivos a reboque deste movimento, mas é importante ressaltar que esta palavra denotava, basicamente, “a desigualdade entre homens e mulheres, não implicando em muitas ‘confusões da sexualidade’”. (4) e “em nenhum momento dos árduos embates do Cairo o termo “gênero” foi objeto de maior controvérsia” (1). Junqueira contextualiza o comportamento da delegação conservadora neste momento, afirmando que as delegações “[…] sem demonstrar compreensão sobre o tema, na Conferência atuaram conforme as orientações dos emissários de Roma para contestar o uso do termo gender, que, entre eles/as, circulava como uma senha para ‘homossexualismo’ – que, ali, podia também abranger as transgeneridades.” (Junqueira, 2018)
A palavra “gênero” passou a ser incluída nas discussões acerca dos direitos sexuais e reprodutivos a reboque deste movimento, mas é importante ressaltar que esta palavra denotava, basicamente, “a desigualdade entre homens e mulheres, não implicando em muitas ‘confusões da sexualidade’
O Vaticano “convocou dezenas de especialistas para pôr em marcha uma ‘contraofensiva’ com vistas a reafirmar a doutrina católica e reiterar a naturalização da ordem social e moral.” (4), contrapondo-se à evolução das discussões patrocinadas pela ONU, fazendo com que tomasse “corpo […] a pauta transnacional de repúdio ao “gênero” na arena das Nações Unidas, cujos efeitos deletérios assistimos hoje nos mais diversos contextos nacionais” (2).
Durante a etapa final do Comitê Preparatório da IV CMM de Pequim (1995), a distribuição de um panfleto “antigênero” alarmou as delegações pró-vida e pró-família da América do Norte. Encabeçada pela Coalizão das Mulheres pela Família, liderada pela jornalista Dale O’Leary, autora do livro “A agenda de gênero” e conselheira pessoal do cardeal Joseph Ratzinger, esta ação adulterou um artigo de Fausto-Sterling sobre intersexualidade, para fomentar uma discussão em que, “ao usar o termo gênero, as feministas […] reivindicavam a existência de cinco gêneros.” (2), constrangendo as próprias feministas a explicarem o termo a membros da própria delegação. Corrêa afirma que estes ataques “não tinham como alvo o gênero […] mas sim a proliferação de sexualidades e gêneros que se deu no seu entorno.” (2). O resultado da Conferência de Pequim expressou, pela primeira vez, o reconhecimento do gênero como cultural, levantando a insuficiência de se falar em igualdade ou mesmas oportunidades sem que os mecanismos produtores das desigualdades fossem igualmente discutidos. Em resposta, o documento Famiglia, matrimonio e “unioni di fatto” foi produzido pelo Pontifício Conselho para a Família (3) com acompanhamento pessoal do Cardeal Ratzinger, no qual pode-se ler, pela primeira vez, a expressão Ideologia de Gênero em um documento da Cúria Romana, o que evidencia e explicita a liderança e a investida da Santa Sé nessa ofensiva. (4).
O termo “gênero” passaria a ser atacado de forma sistemática a partir da Revisão +5 da CIPD e da IV CMM, passando a ser segregado, sofrendo questionamentos sobre seu significado e com pedidos de eliminação, sob alegações que ele “remetia à homossexualidade, pedofilia e outras ‘perversões sexuais’” (2). Além disso, o processo de deliberação e decisão adotado determinava que todas as matérias deveriam votadas em bloco, constituindo enorme obstáculo para a discussão das questões de gênero, sexualidade e reprodução.
Embora muito organizada, essa nova aliança do Vaticano, que muitas vezes usou práticas espúrias para perturbar as negociações, foi derrotada no que diz respeito ao termo gênero, extensivamente usado nos documentos finais. Corrêa suspeita que “esse novo fracasso político da Santa Sé foi o que alavancou o investimento teológico contra o gênero que iria tomar forma em anos subsequentes” (2). A autora afirma que “a cruzada contra o gênero foi, desde sempre, transnacional” (2) e que “só lhe foi possível realizar a profundidade do que ocorria quando tomou consciência da simultaneidade dinâmica dos eventos relativos ao tema na Europa e América Latina”.
Esse novo fracasso político da Santa Sé foi o que alavancou o investimento teológico contra o gênero que iria tomar forma em anos subsequentes.
Embora essas mobilizações só tenham se conformado nos últimos anos, considera-se de grande importância reconhecer que o Vaticano e seus aliados atuam na região há muito mais tempo, sendo urgente compreender melhor o modo como são configuradas essas escaramuças, “mesmo quando elas proliferam em camadas culturais, políticas e religiosas muito antigas e sedimentadas” (2). Junqueira comenta o modus operandi do Vaticano e os discursos conservadores, que defendem que a teoria/ideologia de gênero seria uma forma de doutrinação neototalitária, opressiva, perigosa, marxista e ateia, disfarçada sob a forma de “discursos sobre emancipação, liberdade e igualdade. Uma ideologia que serviria de referência, por exemplo, à Organização das Nações Unidas” (4).
O fato de estudiosos e ativistas negarem a existência dessa teoria/ideologia de gênero costuma levar os defensores das teses antigênero a se recusarem a analisar fatos e se dizerem convencidos da existência desta ideologia, que eles criaram e agora denunciam, num discurso sem grande fundamentação teórica ou factual, gerando um estado de pânico moral que tende a deixar os adversários numa postura defensiva, permitindo ao acusador ver-se livre de defender suas ideias e propósitos das críticas, por mais inverossímeis que sejam. (Junqueira, 2018).
O autor, a esse respeito, comenta que “o discurso alarmista tende a ser acolhido, propagado e ampliado”, (4) à medida que encontrem meios favoráveis onde se difundem e estabelecem condições para os indivíduos exprimirem seus preconceitos, ódios, medos e outras fortes emoções preexistentes, ainda que sem o saber. Desta forma, a mídia não religiosa e as redes sociais têm trabalhado como ampliador de preceitos, concepções e interesses do discurso antigênero (4).
O fato de estudiosos e ativistas negarem a existência dessa teoria/ideologia de gênero costuma levar os defensores das teses antigênero a se recusarem a analisar fatos e se dizerem convencidos da existência desta ideologia.
Concomitantemente, uma mudança na posição dos think-tanks do Norte geopolítico foi percebida, em movimento reverso, ao passar a propor a abolição do multiculturalismo e da criação de novas elites minoritárias e “decretar um novo tempo de moralismo cristão familista” (5), ainda que estes não trouxessem alteração nos padrões capitalistas de geração de riqueza. É provável que de alguma forma ainda não percebida em profundidade pelo movimento progressista que o multiculturalismo, segundo a autora, tenha ameaçado corroer o fundamento das relações de gênero, expondo assim o patriarcado e o que chamou de mandato da masculinidade, “primeira e permanente pedagogia da expropriação de valor e consequente dominação” (5).
*Fe Maidel é psicóloga, artista plástica e gerente de projetos. Membro do Conselho Municipal de Políticas para Mulheres, diretora de Empregabilidade, Qualidade e Certificação da Câmara de Comércio e Turismo LGBT do Brasil, secretária Municipal da Diversidade23- Cidadania, trabalha junto a entidades públicas e da sociedade civil focando o resgate e a sustentação da autoestima feminina como meio de ampliar a participação delas na dinâmica da sociedade.
Referências
- CORRÊA, Sonia. O percurso dos direitos sexuais: das margens ao centro. Revista Bagoas, vol. 3, no 4, 2009.
- CORRÊA, Sonia. A “Política do Gênero”: um comentário genealógico. Cadernos Pagu (53), ISSN 1809-4449, 2018.
- CURIA ROMANA, Vaticano
Declaração “Persona Humana” sobre alguns pontos de ética sexual. In:<http://www.vatican.va/roman_curia/congregations/cfaith/documents/rc_con_cfaith_doc_19751229_persona-humana_po.html> acesso em: 25/03/2020
Orientações educativas sobre o amor humano – linhas gerais para uma educação sexual In:<http://www.vatican.va/roman_curia/congregations/ccatheduc/documents/rc_con_ccatheduc_doc_19831101_sexual-education_po.html> acesso em: 25/03/2020
Famiglia, matrimonio e “unioni di fatto” – Pontificio consiglio per la famiglia
In:<http://www.vatican.va/roman_curia/pontifical_councils/family/documents/rc_pc_family_doc_20001109_de-facto-unions_it.html> acesso em: 01/04/2020
- JUNQUEIRA, Rogério Diniz. A invenção da “ideologia de gênero”: a emergência de um cenário político-discursivo e a elaboração de uma retórica reacionária antigênero. psicol. polít.[online]. 2018, vol.18, n.43, pp. 449-502. ISSN 1519-549X.
- SEGATO, Rita Laura. La guerra contra las mujeres. Edición: Traficantes de Sueños Madrid , 2016. In:<https://www.traficantes.net/sites/default/files/pdfs/map45_segato_web.pdf> acesso em: 30/03/2012
- Construído a partir de “A “Política do gênero”: um comentário genealógico”. Sonia Corrêa, 2018