Em seu voto, o relator destacou que “gênero é questão cultural, social”

Decisão do STJ garante proteção da Lei Maria da Penha para mulheres trans

Por unanimidade, a Sexta Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) estabeleceu que a Lei Maria da Penha se aplica aos casos de violência doméstica ou familiar contra mulheres transexuais. Considerando que, para efeito de incidência da lei, mulher trans é mulher também, o colegiado aceitou o recurso do Ministério Público de São Paulo e determinou a aplicação das medidas protetivas requeridas por uma transexual, nos termos do artigo 22 da Lei 11.340/2006, após ela sofrer agressões do seu pai na residência da família.

Leia também:

Dória Miranda é empreendedora trans que venceu o abandono familiar e hoje emprega outras manas

Lutador brasileiro convoca atletas trans para fundar categoria específica dentro do MMA

Pessoas trans e travestis têm até maio para solicitar nome social em seus títulos de eleitoras

“Este julgamento versa sobre a vulnerabilidade de uma categoria de seres humanos, que não pode ser resumida à objetividade de uma ciência exata. As existências e as relações humanas são complexas, e o direito não se deve alicerçar em discursos rasos, simplistas e reducionistas, especialmente nestes tempos de naturalização de falas de ódio contra minorias”, afirmou o relator, ministro Rogerio Schietti Cruz.

Érika: vemos o números e casos de violência crescer durante a pandemia, em especial contra mulheres negras e pobres

O juízo de primeiro grau e o Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP) negaram as medidas protetivas, entendendo que a proteção da Maria da Penha seria limitada à condição de mulher biológica. Ao STJ, o Ministério Público argumentou que não se trata de fazer analogia, mas de aplicar simplesmente o texto da lei, cujo artigo 5º, ao definir seu âmbito de incidência, refere-se à violência “baseada no gênero”, e não no sexo biológico.

Em seu voto, o relator destacou que “gênero é questão cultural, social, e significa interações entre homens e mulheres”, enquanto sexo se refere às características biológicas dos aparelhos reprodutores feminino e masculino, de modo que, para ele, o conceito de sexo “não define a identidade de gênero”.

Este julgamento versa sobre a vulnerabilidade de uma categoria de seres humanos, que não pode ser resumida à objetividade de uma ciência exata.

Para o ministro, a Lei Maria da Penha não faz considerações sobre a motivação do agressor, mas apenas exige, para sua aplicação, que a vítima seja mulher e que a violência seja cometida em ambiente doméstico e familiar ou no contexto de relação de intimidade ou afeto entre agressor e agredida. “O verdadeiro objetivo da Lei Maria da Penha seria punir, prevenir e erradicar a violência doméstica e familiar contra a mulher em virtude do gênero, e não por razão do sexo.”

Ele mencionou que o Brasil responde, sozinho, por 38,2% dos homicídios contra pessoas trans no mundo, e apontou a necessidade de “desconstrução do cenário da heteronormatividade”, permitindo o acolhimento e o tratamento igualitário de pessoas com diferenças.

Esse entendimento é um ótimo passo para a garantia dos nossos direitos, mas ainda há muito o que ser feito nesse sentido.

Quanto à aplicação da Maria da Penha, o ministro lembrou que a violência de gênero “é resultante da organização social de gênero, a qual atribui posição de superioridade ao homem. A violência contra a mulher nasce da relação de dominação/subordinação, de modo que ela sofre as agressões pelo fato de ser mulher”.

ECOANDO

A decisão foi comemorada pelo movimento. A vereadora por São Paulo Érika Hilton (PSol) ocupou o microfone em sessão ontem, 6 de abril, para destacar que “no Brasil, mesmo com a vigência da Lei, vemos o números e casos de violência crescer durante a pandemia, em especial contra mulheres negras e pobres. Quanto às mulheres Trans, que tem expectativa de vida de 35 anos, a violência e assassinatos tem requintes de crueldade”.

Márcia: garantir que a lei Maria da Penha seja colocada em prática

A Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra) comemorou também ter sido parte fundamental na decisão. “Dados dos dossiês da Antra sendo referenciados pelo relator sobre a importância do reconhecimento da violência de gênero que alcança mulheres trans. Não deve haver qualquer diferença entre mulheres cis e trans em matérias de direitos.”

Coordenadora do projeto Transempregos, a advogada e conselheira seccional da OAB/SP, Márcia Rocha apontou que “esse entendimento é um ótimo passo para a garantia dos nossos direitos, mas ainda há muito o que ser feito nesse sentido. Precisamos disponibilizar cada vez mais informação para a população sobre o tema e garantir que a lei Maria da Penha seja colocada em prática”.