Vitor Mizael resgata o multiculturalismo e provoca o público para reafirmar a identidade brasileira

O artista e professor universitário Vitor Mizael tem provocado o público a sair de seu lugar de conforto com sua exposição no Museu de Arte Contemporânea (MAC) de São Paulo. “Memorial do Desenho”, que está em cartaz até junho de 2020, traz desenhos a lápis sobre caixas de madeira crua, com representações de pássaros brasileiros, porém com alterações em sua anatomia, como patas e garras extremamente alongadas.

As obras levam em conta a tridimensionalidade da caixa, de modo que devem ser observadas de vários ângulos – forçando as pessoas a verem além do que estão acostumadas, mostrando a elas que mais de uma visão é possível e necessária. Um olhar mais de perto comprova que muitas vezes a crueldade se mostra onde menos de espera.

Esse memorial vem na esteira de outra questionadora exposição de sucesso de Vitor, “Terra em Chamas”, com direito a exibição internacional, em Ohio, Estados Unidos. A busca foi por resgatar o multiculturalismo brasileiro como forma de afirmação de nossa identidade, quebrando preconceituosas ideias históricas sobre, por exemplo, índios e negros.

Vitor: sejamos duros e corretos, porém, sejamos ternos

Abaixo ele fala mais sobre os trabalhos e como a atualidade tem afetado sua criação:

Por que buscar as origens do Brasil como em Terra em Chamas? Qual a urgência de resgatarmos nossas raízes?

Acredito que é urgente refundarmos as percepções acerca de nossas origens. Somos mais plurais do que acreditamos, ao mesmo tempo em que devemos questionar a ideia de que tal pluralidade ganhou nossos corpos de modo pacífico e coeso. A percepção de nós mesmos passa, inevitavelmente, por uma imagem forjada, um pastiche daquilo que é verdadeiro. Acreditamos numa fábula mal contada, e isso precisa ser desconstruído. Nesse sentido, atentar para estereótipos e qualidades que nos foram impostas (e que nem sempre correspondem à realidade) é uma necessidade urgente.

Qual a mensagem de Terra em Chamas?

Terra em Chamas lança questões e provoca acerca de quem somos enquanto indivíduos e enquanto coletividade. Essa exposição procurou lançar questões e provocar, mais do que apresentar outras leituras enviesadas. Meu desejo era justamente provocar nossos sentidos, lançando novos olhares sobre elementos fundantes de uma imagética de brasilidade. Por exemplo, realizei algumas pinturas sobre tecidos estampados com imagens botânicas, que tomei como símbolo de uma tropicalidade que nos é imposta. Por sua vez, essas estampas, apesar de serem ‘tipicamente brasileiras-tropicais’, em nada respondem a uma observação científica e cuidadosa da realidade, já que muitas vezes quem as ilustrou sequer buscou observar plantas verdadeiras, pautando-se num senso comum e em relatos. O modo com que essas ilustrações foram concebidas atualmente, a meu ver, em muito se assemelha às representações das florestas e animais das colônias, realizadas por artistas europeus que criaram pinturas e desenhos com base nos relatos dos viajantes nos séculos XVII e XVIII, e que muitas vezes distanciavam-se completamente da realidade, criando imagens fantásticas e absurdas que, por sua vez, fundaram a ideia do que é ser tropical-brasileiro (no caso de nosso país). Assim, desde o nascimento de nosso país, a imagem que temos de nós mesmos e de nosso entorno pauta-se num olhar distorcido, distante e eurocêntrico, de valorização do “exótico-não-civilizado”. Sobre esses tecidos estampados, realizei pinturas que tomaram por base retratos etnográficos de artistas viajantes que buscaram mapear as ‘raças’ presentes nas colônias (e que foram fundamentais para a criação do ideário comum do indígena e do negro escravizado dóceis que se submetiam tranquilamente às vontades dos brancos). Estas pinturas se mesclam com as estampas.

Acreditamos numa fábula mal contada, e isso precisa ser desconstruído

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Você expôs nos EUA uma arte bem brasileira. Como foi a recepção?

Expor nos EUA foi uma experiência extremamente marcante. Lá, pude ter contato com estudantes e visitantes na exposição, e notar que o discurso e o conceito dos trabalhos vão além de uma identificação nacional-brasileira. As obras, apesar de tomarem como ponto de partida questões da minha (da nossa) experiência nessa terra-brasilis, falam, em essência, de opressão, de sistemas estruturados de poder, de multiculturalidade, de fé, da subjetividade humana. Foi extremamente gratificante perceber as pessoas mergulhado nessas questões, reavaliando sua posição privilegiada naquele epicentro econômico e cultural. Foi lindo testemunhar jovens falando de exclusão, da necessidade de uma política multicultural e inclusiva, relacionando os trabalhos com sua experiência diária, com a opressão sentida especialmente na era Trump, enfim, foi coisa linda demais ver eles levados a pensar seu entorno a partir da provocação dada pelas minhas obras e por um discurso que tomou o eixo-sul global como ponto de partida.

 

Dá para comparar essa recepção fora do Brasil e aqui dentro? Como foi?

Acredito que são percepções que tomam caminhos diferentes, mas que chegam a um destino comum. Aqui, os símbolos e elementos que manipulei para criação das obras são habituais e presentes em nosso imaginário. Talvez, aqui no Brasil, o conteúdo político e as origens do discurso poético e conceitual das obras tenha sido mais evidente, enquanto que nos EUA tais símbolos tiveram uma leitura por outros vieses mas, ainda assim, chegando à essência do discurso, que vai além de um porquê pontual e único. Em algumas obras, por exemplo, utilizei azulejos antigos, dos anos 70 e 80, produzidos por empresas brasileiras e que eram muito comuns nas casas populares. Sobre tais azulejos, desenhei e pintei uma série de serpentes brasileiras e nomeei o conjunto dos trabalhos de Arroboboi. Aqui, ouvi relatos de que a leitura das obras passou por uma relação afetiva, pela  a vida ordinária e caseira de um passado não muito distante, e assim buscou relação com as imagens das serpentes. Lá, as leituras foram mobilizadas pelos ornamentos dos azulejos estampados, passando por perceber as qualidades da cerâmica, mas um tanto distante da referência ao ambiente caseiro de um passado próximo, já que tal referência não fazia parte do repertório daquelas pessoas. Contudo, ainda assim, as leituras confluem, tocam nos afetos, na subjetividade e na leitura do mundo, mesmo que cheguem a isso por estradas distintas.

Qual a importância de resgatarmos não só raízes, mas também esse afeto e essa sensibilidade hoje em dia?

Vivemos num momento de embrutecimento, da burrice, da truculência e do fanatismo como valores legitimados pelas esferas de poder.  Como responder a esse mundo, sem endossar esse discurso, ainda que em muitos momentos sejamos impelidos à raiva e ao ódio? Acredito que nossa resposta mais contundente e necessária está, justamente, em reforçar a multiplicidade de nossas origens, em aceitar os afetos, em expor os sentimentos, em não ter medo de nutrir o sensível. Sejamos duros e corretos, porém, sejamos ternos. Afinal, ! hay que endurecer, pero sin perder la ternura nunca, jamás! Tenho cada vez mais exposto meus afetos e entendo isso como uma atitude política, inclusive. Parte de minha atividade profissional dedica-se à sala de aula, sou professor em duas universidades, e meus alunos, tão carinhosos e queridos, têm me mostrado a importância dos afetos como resposta à imbecilidade que se instaurou em parte de nossa sociedade. Há alguns anos, eu procurava impor uma postura mais distante, talvez controlada. Desde o último ano, deixei de me preocupar com isso e não tive mais receio de parabenizar meus alunos quando fazem um bom trabalho, não deixei mais de dizer que acredito muito no trabalho deles, não tentei mais controlar a emoção quando digo que eles serão ótimos profissionais, abandonei o receio de deixar lágrimas caírem na frente da sala de aula quando digo que eles me marcaram. Eu, um ursão barbado, chorando, sendo transparente, contribuo para mudar alguns paradigmas e recebo uma enxurrada de carinho dos meus alunos, simplesmente por procurar abandonar o receio de se expor. Uma atitude pequena, mas que constrói pontes, nutre a empatia e o olhar para o outro. Carinho e empatia aquecem o coração e marcam uma resposta necessária para esses tempos tão frios.

Terra em Chamas explode brasilidade

Você está em cartaz no MAC com obras de desenhos delicados em uma madeira dura. São obras sensíveis e afetuosas?

Acredito que toda (boa) obra de arte carregue consigo um caráter sensível e afetuoso, mesmo aquelas mais ‘mentais’ e conceituais. Estas obras que apresento na exposição “Memorial do Desenho”, que está no MAC-USP até junho de 2020, possuem uma fatura mais íntima e talvez por isso possamos entendê-las como sensíveis. O desenho é um trabalho mais próximo e que exige, inclusive, uma dedicação física-corpórea. Nestes trabalhos, eu realizei desenhos a lápis sobre caixas de madeira crua, que trazem representações de pássaros brasileiros, porém com alterações em sua anatomia, como patas e garras extremamente alongadas. Os desenhos compõem-se levando em conta a tridimensionalidade da caixa, de modo que devem ser observados de vários ângulos. Assim, imponho ao desenho (um meio tradicionalmente bidimensional) um modo de apreciação de outras linguagens, como a escultura e a instalação, o que situa meu trabalho num interstício de linguagens. Propositalmente, realizei os desenhos com esmero técnico, flertando com o desenho acadêmico, o que ataca nossa percepção do que é belo e nos impele a aproximar das obras. Por sua vez, quando nos aproximamos, nos damos conta da crueldade ali existente, isso dado pela deformidade dos animais, por seus corpos enroscados e imobilizados pelas patas que os laçam, criando um jogo de aproximação e repulsa. Esta dicotomia, que ataca nossos sentidos e emoções, me parece próxima da dicotomia existente nas relações humanas.

Como responder a esse mundo, sem endossar esse discurso, ainda que em muitos momentos sejamos impelidos à raiva e ao ódio?

O cenário político atual afetou sua produção? Como?

Arte e vida são elementos que se misturam e se nutrem mutuamente. O processo de realização de um trabalho é também um processo de interiorização, quase meditativo, que vai transformando a ideia enquanto ela é executada, até o ponto de considerá-la pronta. Este caminho é reflexivo e é impossível voltar a olhar o mundo com os mesmos olhos. Produzir arte transforma, assim como também é transformador o contato contemplativo e imersivo com obras de arte. É um processo de retro-alimentação simbiótico. Estou muito afetado com toda essa meleca que temos vivido. A violência contra nós, LGBTQ+, está cada vez maior e presente, todos os desmandos desse desgoverno de merda, esse discurso conservador tacanho, enfim, tudo isso tem me atingido e tenho certeza que reverberará em minha produção. Como disse, produzir arte é um processo de depuração do que se observa e se vive no mundo. Até agora, tenho sentido em meu corpo todo a angústia desse momento que vivemos, tem horas em que tudo dói, que o estômago ferve e a tristeza bate. Muitas vezes é difícil não somatizar. Por outro lado, noto que, apesar de toda essa desgraceira, tenho olhado com muito mais atenção e carinho para a periferia, aquela mesma periferia que está na minha origem e de tantos outros, tenho ouvido com respeito e me divertido com o funk, pirado nos looks dos manos e das manas, me emocionado com as manifestações simbólicas-subjetivas não legitimadas pelo sistema da arte, tenho buscado o sagrado na umbanda, tenho chorado de alegria de ver as minas trans cantando, enfim, tenho abraçado e assumido questões que tocam meu coração e minhas verdades, que me tocam enquanto homem gay e identificado com a luta de todos que de alguma forma são subjugados por esse governo de imbecis truculentos. Como isso tudo reverberará no meu trabalho eu ainda não consigo precisar, mas é certo que se vivo tudo isso, de algum modo aparecerá em meus trabalhos.

A arte resistirá sempre?

Arte resistirá sempre (e além).

 

MAC

Avenida Pedro Álvares Cabral, 1301 – Vila Mariana, São Paulo

De terça a domingo, das 10h às 21h

Ingresso gratuito

(11) 2648-0254