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TRAÇADO

Gabs usa as redes sociais para espalhar mensagem de aceitação a todas as pessoas trans

Gabriel de Carvalho é um tatuador de Santo André (SP) que sempre sentiu que havia algo que não se adequava em sua vida. Era sua identidade de gênero, que há alguns anos desabrochou e deu fruto a um homem, hoje de 25 anos, decidido, simpático, forte e com vontade de fazer com que todas as outras pessoas trans também consigam traçar um caminho que as faça feliz.

O rapaz não acredita em signos, conta, mas crê fortemente na força das redes sociais para espalhar sua mensagem para quem também está passando pelo processo de transição. Em seu canal no YouTube e em seu perfil no Instagram, “Gabs The Trans”, ele fala em primeira pessoa sobre assuntos comuns para quem está neste caminho, como empregabilidade, identidade e masculinidade tóxica.

Talvez eu tenha percebido desde a infância, muito antes de estudar sobre conceitos de gênero

“Foi só aos 22 anos de idade que pude entender minha identidade de gênero. Quando a dor penetrava profundamente meu coração, percebi que havia algo ‘errado’. É injusto se sentir tão mal consigo mesmo a ponto de sequer se olhar no espelho. Ou inventar personalidades cisnormativas para agradar os outros, ele conta à Ezatamag na entrevista a seguir:

Você sempre se sentiu Gabs? Como foi perceber que era preciso mudar?

Talvez eu tenha percebido desde a infância, muito antes de estudar sobre conceitos de gênero. É muito sobre ser, sobre sentir. Sobre se ver fora de todos os padrões designados ao sexo feminino desde o nascimento. Sobre dor, sobre se sentir “o esquisito” da turma. Talvez eu nunca tenha sentido ser transmasculino, só nasci assim. Foi só aos 22 anos de idade que pude entender minha identidade de gênero. Quando a dor penetrava profundamente meu coração, percebi que havia algo “errado”. É injusto se sentir tão mal consigo mesmo a ponto de sequer se olhar no espelho. Ou inventar personalidades cisnormativas para agradar os outros. A terapia me ajudou muito a entender sobre essa identidade “escondida”.

Como foi esse processo de transição para você? Quais foram os maiores desafios?

Eu pensava muito sobre suicídio. Não me encaixava no meu corpo, nem padrões binaristas de gênero. Algo parecia errado. O processo de transição foi intenso, meu psicanalista na época me ajudou a entender essa identidade, junto com meu psiquiatra. Costumava tomar uma grande quantidade de remédios para depressão ansiosa, quando comecei a “aceitar” essa identidade e fui levando minhas dores a ele (psiquiatra) também, foi algo libertador. Tanto ele, quanto meu psicanalista chegaram na mesma conclusão de que negar aquilo, o que realmente sou, estava me matando. O passo mais difícil depois daí foi contar para minha família, especificamente para minha mãe. Em vida, ela foi a pessoa mais maravilhosa que tive o prazer de conviver, partilhar sentimentos e memórias maravilhosas… Para minha surpresa, ela, mesmo com 52 anos de idade, entendeu o que eu quis dizer. Foi mais ou menos assim: “Mãe, me sinto um homem”, “Que nem o Thammy?”, “Sim”, “Eu já sabia”. Eu chorei, nos abraçamos. Ela me disse para ter cuidado com o mundo, com as pessoas de má índole. O outro passo foi iniciar a transição hormonal. Optei por sair de casa e morar com a minha esposa para fazer isso. Nessa fase, queria me afastar de comentários do meu pai e ir procurar tudo sobre sozinho. Até hoje, arco com todos os custos. Talvez fosse uma questão de orgulho também. Foi difícil lidar com mudança, morar com a minha esposa (Carol é uma mulher cis que está ao meu lado há 14 anos), trabalhar num lugar transfóbico e ver todas as mudanças no meu corpo.

O que você pode dizer para quem está trilhando o mesmo caminho e passando por esses desafios?

Procure referências reais, é fundamental entender nosso papel inserido no contexto social e político. Estudar e perceber o quanto a transfobia é estrutural na nossa sociedade. Existimos no país que mais mata pessoas trans e travestis, só nossa existência, por si só, é um ato contra o CIStema. “A mudança é o processo essencial de toda a existência” – Sr. Spock, Jornada nas Estrelas. Ninguém nasce sabendo das coisas, quando eu comecei, não tive ninguém para me mostrar que não precisava seguir um padrão, assumir um papel de homem “cis-hétero-normativo”. Quando me tornei mais ativo no Instagram, me permiti conhecer movimentos sociais e outros transativistas/militantes, comecei a enxergar e a encarar tudo com outros olhos, principalmente saber que não estou sozinho nessa jornada. Se desconstruir é essencial. Entender que cada um tem seu próprio tempo também é.

Procure referências reais, é fundamental entender nosso papel inserido no contexto social e político

Você acredita que as pessoas trans têm conquistado mais espaço no mundo atual?

Sim. Estamos cada vez mais tomando nosso espaço de direito e não permitindo mais sofrer por exclusão social. Trazer diálogos, conceitos de lugar de fala e interseccionalidade constrói pontes para outras pessoas passarem a entender nossa luta e até advogar por nós.

Como é possível aumentar a representatividade e abrir mais portas para as pessoas trans?

Primeiro as pessoas precisam entender o que, de fato, é representatividade. Não é sobre autopromoção. É ser presente, ter um papel ativo na comunidade e colaborando de forma efetiva enquanto coletivo. Precisamos urgentemente extinguir esse conceito de que representatividade é só fazer autopromoção e não fazer nada com as pessoas que lutam ao seu lado, não usar sua figura pública para dar voz para minorias marginalizadas. A representatividade midiática é importante para alcançar a massa e dizer que existimos e lutamos. Ao mesmo tempo, precisamos cobrar posicionamentos. Por exemplo: a Globo fez uma novela com a atriz trans. Mas quantos trans trabalham lá? Quantos têm cargos tão importantes quanto dessa atriz? Eles querem nossos biscoitos, mas ficaremos de olho se essa representatividade é efetiva ou é “só” para dizer que trabalham com práticas de Diversidade & Inclusão.

Como surgiu o projeto do canal no YouTube? Como você se sente compartilhando sua experiência?

Eu já tinha um canal no YouTube quando era mais novo. Acho que fui um dos primeiros canais BR a ter um canal com temática LGBT+, pois falava das minhas vivências como mulher cis lésbica em acontecimentos do cotidiano adolescente. Percebi que ninguém falava sobre isso tão “abertamente”, então pensei “Por que não?”. Tive dois momentos na criação e re-criação no canal Gabs The Trans: o primeiro momento era para ser uma extensão do Instagram, com vídeos mais longos sobre um diário de transição. Com o passar do tempo, focava mais nas mudanças físicas, como quase todo mundo quando faz quando inicia a hormonização. Era bem ansioso para ver a voz engrossar, pêlos da barba, etc. Fui percebendo que nada disso viria do dia para a noite, então a ideia de diário ficou apenas no Instagram mesmo. A recriação do canal foi quando minha mãe faleceu. Naquele momento, o sentimento de luto me revirou por inteiro. Foi como um choque, de repente descobrir que podemos não estar mais aqui como num piscar de olhos. Passei a usar uma abordagem diferente, o objetivo se tornou ajudar. Desde reviews de packers até sobre como eu me entendi um homem transexual. Me sinto livre para expor meu ponto de vista para diversas situações. Demonstrar que ninguém está sozinho aqui, somos uma classe e não devemos lutar sozinhos. O canal também me ajudou a criar laços afetivos com diversas pessoas e, cada uma delas/us são especiais para mim.

Qual a importância de projetos como este?

Para criar diálogos e desconstrução para/com todes. Devemos usar a globalização ao nosso favor, uma fala minha aqui, de São Paulo, pode chegar até uma pessoa trans lá do outro lado do Brasil, por exemplo. Devemos ouvir as dores e anseios para debatermos e, consequentemente, se tornar um hábito esse tipo de discussão, assim conseguimos cobrar políticas públicas para nossa classe. Incomodar quem deve ser incomodado. Fazer com que as pessoas saiam de sua zona de conforto.

O que a tatuagem representa na sua vida?

Contar histórias mais íntimas das pessoas, por meio de um manifesto artístico. É como um ritual de passagem, superação ou amor, mas da pessoa consigo mesma. A obra estará ali para sempre (ou até se enjoar, rs). Eu amo a tatuagem desde criança, essa coisa de mostrar para o mundo quem você é por dentro, se usufruindo da arte, é muito lindo. Começar a trabalhar com isso me completa, é como se eu tivesse “zerado” minha vida. Me sinto pleno.

Instagram @gabs.thetrans

1 Comments
  1. Silvia Ramos de Ávila

    07/05/2020 00:38

    Fico feliz que tenha amadurecido e se encontrado com o direito de ser o que realmente é! Conheci sua mãe e ela devia ter muito orgulho de você ! Parabéns!

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