Prefeitura do Rio tenta censurar o incensurável e espalha beijo gay pelo Brasil
Por Hélio Filho
A edição 2019 da Bienal do Livro do Rio de Janeiro chegou ao fim e entra para a História LGBT pela resistência ao obscurantismo, pela garantia do Estado laico e pela manutenção da liberdade de expressão em tempos onde a Bíblia vem sendo usada no lugar da Constituição. O prefeito Marcelo Crivella tentou, mas não conseguiu retirar das prateleiras a obra da Marvel “Vingadores, a Cruzada das Crianças”, escrita pelo norte-americano Allan Heinberg e ilustrada pelo britânico Jim Cheung.
Em um Estado que afunda em problemas, em uma cidade que sangra violência e desigualdade, no país que mais mata LGBT no mundo todo, a preocupação do prefeito foi com um beijo adolescente. Tentou barrar na Justiça a venda e iniciou uma guerra judicial onde o único derrotado foi ele mesmo. Ao tentar esconder o beijo dos rapazes, acabou por colocá-lo na capa de um dos mais importantes jornais do Brasil, a Folha de S. Paulo.
Mesmo já tendo terminado, a Bienal ainda é alvo de um Embargo de Declaração da Prefeitura, que continua questionando a venda da HQ – mesmo que embasada em fakenews, em preconceito e em intolerância. Mas seria mesmo homofobia? O conteúdo não era realmente impróprio para menores de idade e deveria sim ser vendido em um saco preto?
A resposta é uma das mais fáceis do mundo: não. Uma rápida olhada pela História da Arte nos joga uma enxurrada de beijos entre um homem e uma mulher. Cubistas, expressionistas, impressionistas, renascentistas… todos eles usaram a beleza do beijo como inspiração. Ao classificar o beijo da Marvel como impróprio, o prefeito discrimina porque não pede que todas as outras obras, aquelas com beijos heterossexuais, também sejam vendidas desta nefasta maneira.
Nos tempos de editor da Revista Junior, era vital que tomássemos cuidado com as capas. Não poderiam ter pelos pubianos sendo exibidos senão a revista não era impressa – enquanto tantas outras, logo ao lado, estampavam verdadeiros exames ginecológicos. Mas o pelo pubiano masculino era inadequado, um horror, escandaloso.
Olympia
Se o beijo não é novidade na Arte (vide galeira acima), infelizmente a censura também não. O episódio carioca nos conecta a uma Paris do século XIX que fervilhava como capital cultural e intelectual. Uma cidade que via a sociedade se transformar como nunca antes (como agora) com o advento da revolução industrial, das novas tecnologias – porém ainda antiga em seu pensamento.
Um exemplo triste é “A Origem do Mundo”, de Gustave Courbet (1866), jogando na cara do espectador uma vagina, a coisa mais natural do mundo. O choque provocado parece não ter diminuído, porque em 2011 a mesma obra foi proibida em uma postagem no Facebook, a maior exposição que o mundo já viu. Mas Courbet havia plantado uma semente, disse para os bons entendedores que era o fim da submissão dos artistas às regras. Vale o que eu sinto, a realidade do mundo, não o que você acha certo.
Mas antes, em 1865, outro francês já derrubava de vez a patrulha ideológica na arte despindo a mulher do figurino divino, dos anjos rosados e do horizonte florido. Com “Olympia”, em 1865 Édouard Manet (não confundir com Monet, que veio depois) usa o Salão de Paris para colocar a cantora Victorine Meurent nua em uma cama, mas desta vez abusada, corajosa, empoderada, olhando diretamente para o espectador.
Aquela mulher tinha a coragem de olhar nos seus olhos e não tinha vergonha de ser quem ela é. Um escandaloso retrato feminino que machucava os conservadores olhos da família parisiense (onde estava a mulher submissa, os cânones católicos?), com os jornais exigindo que a tela fosse, se não excluída, pendurada em um lugar mais alto para as crianças não verem.
O conservadorismo atacava o que não lhe agradava simplesmente porque não lhe agradava, simplesmente porque a arte não estava mais obedecendo a sua vontade – o mesmo caso das revistas e dos pelos pubianos do século XXI. Preconceito, atraso e discriminação jogados na cara de quem sempre soube que a nudez é a coisa mais natural do mundo e sempre esteve presente nas mais diversas obras.
Triste saber que exemplos não faltam ao longo do tempo – Vaticano retirando os pênis de suas estátuas e desfigurando obras-primas, a brasileira “La Bête”, em que o coreógrafo Wagner Schwartz foi tão atacado pela nudez -, mas sempre há a esperança de que este movimento, como naquela Paris, termine em uma renovação total de conceitos artísticos e humanos.
Que venha logo o mictório de Marcel Duchamp.