Comemoramos aniversário querendo incentivar, valorizar, empoderar, dourar, divulgar, amar, respeitar, admirar, desenvolver, apoiar, elogiar

Ezatamag fez nesta semana um ano de vida. Ou seja, um ano no ar. Mas eu diria que é um ano de vidas, no plural mesmo, porque elas são o nosso maior foco. Incentivar, valorizar, empoderar, dourar, divulgar, amar, respeitar, admirar, desenvolver, apoiar, elogiar essas vidas. Há um ano Estevão me ligou e cá estamos, colhendo os frutos de uma semeadura nem sempre fácil, mas que sempre vale a pena. É o calor do meu dia esquentando meu coração.

Acho que depois de um ano todes merecem saber como surgiu essa ideia. Ela sempre foi do e por causa do Estevão. Uma experiência com uma amiga trans fez ele sentir a necessidade de fazer algo por todas elas. Juntamos a fome com a vontade de comer porque eu também queria muito fazer algo pela nossa gente, mas diferente do que já tinha feito em 61 edições da revista Junior, diferente dos oito anos de Portal MixBrasil, da H Magazine, das colaborações para a Via G.

Eu amo tudo isso que eu fiz até 2015 (2016, talvez), mas o meu momento era outro. E após uma experiência surrealmente prazerosa de satisfação profissional na Parada do ano passado encontrando um personagem de uma antiga matéria (beijos, Diego), eu estava inquieto em voltar a fazer jornalismo com foco em nós. E aquilo foi cozinhando em mim em junho e julho, mês que terminou com a ligação/convite/vamospularnestajuntes do Estevão.

Uma das primeiras questões que discutimos foi se nós não estaríamos invadindo o espaço de fala das pessoas trans.

Eu me lembro bem da data porque foi meu primeiro dia de férias no meu antigo emprego, no Governo do Estado. Muito capricorniano receber um convite destes no primeiro dia de férias, e topar (também no mesmo dia topei meu outro atual emprego, reforçando todos os clichês capricornianos para todo o sempre do universo inteiro). Sim, eu não tive férias e desliguei o telefone já colocando em pé o que nós somos hoje e queremos ser daqui para frente (porque estamos apenas começando).

Falando com gente querida que já tinha colaborado comigo antes para fazer esse algo diferente do (too) hard news. Que deve existir em todas as suas expressões porque o leitor merece escolher se quer discutir ou só ver a pessoa famosa. E tudo bem. A internet não tem espaço definido, todes cabem. Quando o Estevão me falou da proposta eu amei muito na mesma hora por ser este diferente, por tentar fazer justamente algo novo em meio à tanta reprodução.

E agora vamos ser bem sinceros. Uma das primeiras questões que discutimos foi se nós não estaríamos invadindo o espaço de fala das pessoas trans. Porque eu e Estevão somos cis, homens, brancos, cheios de privilégios QUE NÓS RECONHECEMOS e decidimos usar em favor de todes. É horrível saber que as pessoas abrem as portas para mim e não abrem para outra pessoa. Então a gente decidiu que toda porta que a gente conseguir abrir a gente vai levar junto todes mundes corpes diverses.

O meu maior cuidado talvez seja justamente para não assumir um discurso que não é meu, mas do qual sou aliado. Por isso Ezatamag tem tantas entrevistas e relatos. Por isso nossa linha editorial é predominantemente feita destacando o que essas pessoas querem dizer. É para dar voz, espaço, direitos, dignidade, alegria, reconhecimento para todo mundo que não faz parte da hegemonia – o que antes eu chamava de minoria e hoje defino como grupos não-hegemônicos.

É horrível saber que as pessoas abrem as portas para mim e não abrem para outra pessoa. Então a gente decidiu que toda porta que a gente conseguir abrir a gente vai levar junto todes mundes corpes diverses.

E fica já um pedido de desculpas das mais sinceras se em alguma das nossas publicações eu cometi essa invasão. Eu sou aliado e me sinto muito feliz vendo essas pessoas brilharem na nossa página. Eu sou o meio, apenas. Elas são as protagonistas. Porque é preciso reconhecer privilégios para saber a falta que eles fazem a outres. É uma construção diária, aprendo todos os dias sobre ter mais empatia.

Aprendo todos os dias lições de vida que muitas vezes me fazem chorar aqui em frente ao computador, frases que mudam minha vida sim. De gente que está propondo, fazendo, discutindo, opinando, tentando, sobrevivendo, lutando. Eu acho linda a felicidade dessas pessoas quando veem aquela entrevista pronta, com corpo, edição, imagens, vídeos. É o calor do meu dia já citado acima.

Eu me sinto honrado em poder editar um veículo de comunicação que faz diferença na vida de alguém. Por isso queria agradecer de novo ao Estevão e a todes que colaboraram, participaram, cantaram, dançaram, aconselharam e tudo mais neste um ano de jornalismo de combate, usando amor e doçura contra a caretice e as trevas contemporâneas.

Vou sim emitir uma opinião que pode ser polêmica: pessoas trans estão no topo da “cadeia alimentar” humana, como já disse a alguns amigos. Elas são o “torna-te quem tu és” de Nietzsche, elas são o “conhece-te a ti mesmo” traduzido por Pausânias do Oráculo de Delfos. Não há nada mais evoluído do que não ter amarras para evoluir, caminhar para um lugar mais caloroso, bonito e com gente que te adora como você é – mesmo que o caminho seja difícil.

Porque é preciso reconhecer privilégios para saber a falta que eles fazem a outres. É uma construção diária, aprendo todos os dias sobre ter mais empatia.

É o escovar ao contrário, a rachadura do cistema – tão poderoso ao ponto de respingar em preconceitos dentro do próprio meio LGBT.

O preconceito contra pessoas trans me incomoda há anos, pelo menos desde que Márcio Canedo e Silvia Frias me contaram o caso da Patrícia, que tinha receio de ir ao dentista por causa do preconceito. Como uma pessoa é obrigada a ficar com dor de dente por medo de ser atacada?

Um cotidiano diferente do meu que me tocou, me foi jogado na cara pelos dois e adubado com uma consciência crescente, e ainda em construção, sobre o que é ser eu e como eu me relaciono com o outro. E ainda, como a relação do outro com o outro também me afeta.

Patrícia soltou uma frase icônica, que lembramos até hoje, quando soube que um amigo iria atendê-la sem problema nenhum, porque não tem problema nenhum mesmo, poxa.

“Aceita trans?”

Claro! Aceita, incentiva, valoriza, empodera, doura, divulga, ama, respeita, admira, desenvolve, apoia, elogia…

PS: quem quiser mandar um bolo aqui em casa eu aceito, amo doce.