Carta da Antra ao presidente Lula e à equipe de transição de governo
Direitos e Política, Notas e Ofícios
Por Antra*
Caro Presidente Lula e equipe de compõe a transição de governo, a Associação Nacional de Travestis e Transexuais (ANTRA) é uma instituição que atua no BRASIL há 30 anos em defesa dos direitos LGBTQIA +, mais especificamente pelos direitos de travestis e demais pessoas trans. Somos uma rede que organiza defensores de direitos humanos e agrega mais de 120 instituições afiliadas pelo Brasil.
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Através desta vimos, em nome das pessoas trans brasileiras, reforçar nosso compromisso com sua candidatura e a alegria de termos contribuído para sua eleição, como agentes importantes que lutaram incansavelmente nas eleições de 2022.
Já estivemos junto ao projeto de país que V Exª representava por ocasião de todas as ações que foram feitas em seu governo que sinalizavam uma mudança da forma com que o estado passava a se relacionar com nossa existência. Pudemos contribuir ativamente para a construção do Brasil Sem Homofobia representada pela saudosa Janaína Dutra, primeira advogada Travesti do Brasil com registro na OAB, estivemos em todas as conferências LGBTQIA+, compomos o Conselho Nacional de Combate a Discriminação de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais – CNCD-LGBT inclusive, estivemos na presidencia desse colegiado entre 2012 e 2014. Atuamos ainda no Conselho Nacional das Mulheres e no Conselho Nacional de Saúde em período que avançamos muito em algumas pautas.
Tudo isso foi fruto de intensas articulações, atuações e parcerias estabelecidas nos governos progressistas que comandaram o Brasil nos quatorze anos até o rompimento com o golpe parlamentar de 2016. Aqui destacamos a importância do Departamento de Apoio à Gestão Estratégica e Participativa – DAGEP / Secretaria de Gestão Participativa do Ministério da Saúde, pois foi nesse espaço que pudemos sentir pela primeira vez a atuação direta da nossa população na integralidade do SUS. Também contribuímos ativamente nas políticas estabelecidas pelo ministério da educação, através da SECADI e do Conselho Nacional de Educação, e nesse sentido compomos ainda o GT da Secretaria Nacional de Segurança Pública – SENASP do Ministério da Justiça.
Estivemos ainda, diretamente envolvidas nas grandes conquistas dos direitos LGBTQIA+ no judiciário, como a luta pelo direito à retificação de nome e gênero, a criminalização da LGBTIfobia e pelo direito à doação de sangue por pessoas LGBTQIA+. Contribuímos com a construção da resolução do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) sobre a restituição de nome e gênero, sobre os direitos das pessoas LGBTQIA+ em privação de liberdade e mais recentemente na resolução do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) sobre a inclusão de questões LGBT’s em resolução sobre o banco de dados, cadastros de eleitores e candidaturas trans.
Nos últimos anos temos nos debruçado sobre produção de dados de violação de Direitos Humanos sobre nossa comunidade que segue invisível e que vem enfrentando um processo de maior vulnerabilização e recrudescimento da violência contra nós, seja por parte do estado (por ação ou omissão) ou pela sociedade como um todo, como um reflexo da política anti gênero, e um impacto direto da falaciosa “ideologia de gênero” e a própria atuação publicamente LGBTIfobica do governo bolsonaro.
Constatamos nesse período a destituição e o desinvestimento na pasta LGBTQIA+ no Ministério dos Direitos Humanos, que fora renomeado nesse governo como ministério da mulher, família e dos direitos humanos, assim como não foi feita nenhuma ação efetiva em defesa de nossos direitos. Pelo contrário, passamos os últimos 6 anos sendo humilhadas, ameaçadas e vivendo com medo. Medo de andar na rua e até mesmo de participar da luta política devido a sensação de insegurança que se instalou no país e os altos índices de violações de direitos humanos contra essas e esses defensores e grupos minorizados.
Durante a pandemia não houve qualquer ação que garantisse os cuidados a nossa comunidade e a maioria de nós não teve acesso aos auxílios governamentais e políticas emergenciais, exatamente por fazermos parte do grupo mais “marginalizado” dentre a comunidade LGBTQIA+. Travestis e pessoas trans são o grupo mais violado, em especial travestis e mulheres trans negras.
Durante a pandemia não houve qualquer ação que garantisse os cuidados a nossa comunidade.
Em 2022, de acordo com o relatório mais atualizado da Trangender Europe – TGEU, pelo 14º ano consecutivo o Brasil seguiu na liderança dos assassinatos contra pessoas trans no ranking global. Dado que denuncia a ausência de ações específicas nesse sentido, já que a violência sistemática contra a população trans vem de longa data sem respostas efetivas. E não podemos mais esperar.
Diante desse cenário gostariamos, de forma muito afetuosa, solicitar que V. Exª assuma um compromisso público com nossas vidas e nossos direitos. E não apenas como uma forma protocolar, mas efetivamente empenhado em erradicar a transfobia em todos as formas que ela admite. Ajudamos a eleger um projeto de BRASIL popular e desejamos ocupar um lugar digno na reconstrução de nossa democracia e do país que queremos viver.
Simbolicamente, é fundamental que o senhor fale abertamente sobre a defesa de nossos direitos. Diversos líderes pelo mundo tem feito esse aceno em consonância com tratados internacionais que já avançaram nessa questão, e isso tem um impacto direto na vida de nossa comunidade.
Materialmente é urgente que sejam destinados esforços para ações e políticas que visem enfrentar a violência motivada por orientação sexual e/ou identidade de gênero, assim como a garantia de que ninguém será deixado de lado.
Materialmente é urgente que sejam destinados esforços para ações e políticas que visem enfrentar a violência.
Entendemos o jogo da política e de como a nossa pauta tem sofrido diversos processos de criminalização e até mesmo sendo posta como algo que atrapalhe a luta dos trabalhadores e trabalhadoras, o que muitas vezes é usado para silenciar nossas legítimas reivindicações. Em nossa perspectiva é inaceitável que qualquer pessoa se sinta constrangida em defender abertamente nossa existência ou seja coagida a não falar sobre nós já que compomos o campo popular, democrático e nossos direitos são inegociáveis.
Por tudo isso, além de nos colocar inteiramente à disposição, gostaríamos de sugerir algumas recomendações fundamentais na nossa perspectiva para que sejam promovidas e garantidas condições dignas para a nossa população tão excluída e que precisam de atenção, tais como, à vida, à cidadania e à humanização de nossa comunidade em todos os âmbitos e sentidos.
Sendo elas:
Ratificação em caráter de urgência o CID-11, publicada em 2018 pela Organização Mundial da Saúde, de modo a reconhecer que a transgeneridade não é uma doença;
Revisão e atualização dos procedimentos previstos no Processo transexualizador a partir do que está previsto na resolução 2265/2020 do CFM, sem se limitar a ela e com diálogo com os movimentos trans;
Ampliar a rede de oferta dos procedimentos previstos no processo transexualixador com a habilitação e implementação de Ambulatórios e hospitais, com atenção especial aos estados onde não existam ou estejam inoperantes;
Cumprimento imediato da decisão do STF no julgamento da ADPF 787 em 28/06/2021 sobre o acesso à saúde de pessoas trans no SUS;
Restabelecer a política de HIV/AIDS no status de departamento dentro do Ministério da Saúde, nos moldes do que tínhamos e amplamente melhorado, pois sofremos retrocessos nesses últimos seis anos;
Incluir informações sobre à comunidade LGBTQIA+ no Censo previsto para 2030;
Destinação de Recursos (materiais, pessoais e financeiros) para ações de enfrentamento à transfobia priorizando a educação em todos os níveis, saúde, segurança pública e na assistência social;
Geração de dados sobre a nossa comunidade no âmbito do sistema de justiça e de direitos humanos;
Revogar em caráter de urgência o decreto 10977/2022 sobre novo RG;
Instituir o programa transcidadania a nível federal, a exemplo do que fez a prefeitura de São Paulo no governo do prefeito Fernando Haddad;
Atuar para a inclusão e garantia da proteção específica às travestis e mulheres trans dentro das políticas de proteção a violência de gênero e mulheres;
Estabelecer diálogo com os movimentos sociais de pessoas trans politicamente mobilizados em questões referentes aos nossos direitos;
Atualização e modernização do disque 100, incluindo a necessidade de informações específicas sobre identidade de gênero;
Promover ações específicas para a erradicação do bullying transfóbico e interromper a exclusão de pessoas trans nas escolas e universidades;
Destinar vagas específicas para pessoas trans em programas de geração de emprego e/ou de renda, e incentivos fiscais para empresas que têm vínculo com o estado para contratarem pessoas trans, priorizando travestis e mulheres trans;
Ratificar e atuar para a efetiva implementação da CONVENÇÃO INTERAMERICANA CONTRA TODA FORMA DE DISCRIMINAÇÃO E INTOLERÂNCIA, com atenção a garantia da autodeterminação e livre expressão de gênero das pessoas trans;
Atuar para implementar todas as recomendações previstas na RPU no tocante as pessoas LGBTQIA+;
Garantir a representação e participação efetiva de pessoas trans em todas as ações do governo sobre direitos humanos e enfrentamento do racismo, da violência contra a mulher e proteção contra grupos minorizados;
Viabilizar a criação de um “Plano nacional de combate a LGBTIfobia e promoção da cidadania LGBTQIA+”;
Atuar para proteger jovens LGBTQIA+, especialmente jovens trans, incluindo crianças e adolescentes, investindo recursos para pesquisas e programas para o mapeamento das necessidades específicas desse grupo, seus familiares e responsáveis.
BRASIL, 10 de novembro de 2022.
Associação Nacional de travestis e Transexuais (ANTRA)
*Antra é a Associação Nacional de Travestis e Transexuais, rede de organização política de pessoas trans que articula em todo o Brasil 127 instituições que desenvolvem ações para promoção da cidadania da população de Travestis e Transexuais.