Dois pais homoafetivos e três adoções necessárias (Parte III)

Por Toni, David, Alyson, Jéssica e Filipe Harrad Reis*

Um mês mais tarde, fomos até o Rio de Janeiro para passar o final de semana com Alyson na ocasião de seu 11º aniversário. Novamente, foram três dias de encontros e desencontros nas expectativas e vontades de cada um à medida que fomos nos conhecendo melhor.

A birra surgia principalmente quando Alyson queria que comprássemos tudo o que chamava a atenção dele, como por exemplo uma prancha de surfe, óculos de natação, um relógio… Nesse início da relação, dizer “não” pesava para nós, mas foi necessário, apesar da reação dele, para ir estabelecendo limites.

Por outro lado, conhecemos no Alyson um menino inteligente, bem-humorado, comunicativo, encantador, carinhoso e extremamente sociável. Participamos de um evento durante essa visita e enquanto nós dois queríamos ficar juntos com ele, ele estava perfeitamente à vontade sozinho, conhecendo novas pessoas e conversando, de forma bastante independente e responsável.

Convivência foi quebrando os preconceitos de Alyson

Alyson afirma que nós já cuidávamos dele “como se fosse nosso filho, mesmo não sendo adotado ainda e apesar de não ser filho de sangue.”

É preciso explicar que Alyson vivenciou uma experiência dolorosa de separação de sua família, da qual foi tirado por motivos de maus tratos. Afirma que passou por sete abrigos. Fugia do abrigo e voltava para casa, sem que a sua mãe o acolhesse, passando então a morar em outro abrigo, e assim sucessivamente.

Sua revolta era tamanha que nas audiências com a juíza ele precisava ser escoltado por policiais para que não fugisse. Nos abrigos, a maioria mantida por organizações de base religiosa, Alyson conta que sofria repressão e castigos bastante desumanos…  ficar de cabeça para baixo apoiado numa parede, ficar ajoelhado em grãos de feijão, ficar sem comer à noite.

Alyson afirma que nós já cuidávamos dele “como se fosse nosso filho, mesmo não sendo adotado ainda e apesar de não ser filho de sangue.”

Quando conhecemos Alyson, ele já estava morando havia mais de um ano com a família acolhedora já mencionada, dentro de um programa de abrigamento do município do Rio de Janeiro. Apesar de ele ter criado um forte vínculo afetivo com a mãe acolhedora, lá também a influência religiosa era grande: o pai acolhedor era testemunha de Jeová.

Alyson tem disposição artística e criativa e nesses ambientes sofreu forte repressão. Quando visitávamos a casa deles, o pai acolhedor fazia questão de pegar a Bíblia e ler em voz alta para nós os capítulos que podem ser interpretados como condenando a homossexualidade.

No dia 19 de dezembro de 2011, fomos novamente ao Rio de Janeiro para receber a guarda provisória do Alyson, por um período de convivência de seis meses. Em todo esse processo de aproximação ao Alyson e até nas formalidades legais fomos abençoados com a solidariedade e os esforços de muitas pessoas para que tudo desse certo.

Na audiência Alyson estava bastante triste por ter que deixar a casa da família acolhedora e falou para a juíza que, para ele, ir morar conosco era uma decisão bastante difícil porque havia criado vínculos com essa família.

Apesar dos recursos do promotor do Ministério Público junto ao Supremo Tribunal Federal (STF) e Superior Tribunal de Justiça (STJ) contra nosso pedido de adoção, a juíza responsável pelo caso entendeu que como os recursos não tinham efeitos suspensivos, o que estava valendo enquanto o STJ não desse sua decisão era a decisão do Tribunal de Justiça do Paraná (TJ-PR) de que poderíamos adotar em conjunto sem quaisquer restrições.

Quando visitávamos a casa deles, o pai acolhedor fazia questão de pegar a Bíblia e ler em voz alta para nós os capítulos que podem ser interpretados como condenando a homossexualidade.

Chegando à nossa casa, Alyson diz que às 2h30 da madrugada do primeiro dia ele acordou, levantou e andou pela casa para conhecer. Diz que gostou do espaço em que passou a morar.

No mesmo dia, fomos fazer a carteira de identidade de Alyson, para que dali a algumas semanas ele pudesse viajar para o exterior conosco (sem a carteira de identidade, não seria possível a saída dele do Brasil). Durante a espera no Instituto de Identificação Alyson disse, “sabiam que eu tenho nojo de homossexuais?”

Mais tarde no mesmo dia, retomamos essa conversa e falamos que havia nos ofendido, sobretudo porque ele sabia muito bem que éramos um casal gay antes de aceitar ser adotado por nós. Ele se desculpou e disse que falou aquilo devido ao que aprendeu em função das convicções religiosas dos abrigos e da família acolhedora.

Ele tinha um preconceito parecido em relação às religiões de matriz africana e à igreja católica. Na primeira visita de Alyson a Curitiba, em outubro de 2011, fomos almoçar um dia em um restaurante mineiro onde havia enfeites rústicos, como galinhas, panelas de barro com fumaça saindo etc. Alyson disse que não queria comer lá e queria sair o mais rápido possível por causa da “macumba”.

De forma semelhante, ao passar na frente da catedral, que estava com as portas abertas, ele também fez comentários depreciativos sobre a igreja católica. Quase um ano depois, um dia que estávamos passando novamente na frente da catedral, por iniciativa própria ele entrou para conhecer e saiu apenas descrevendo o que viu, desta vez sem fazer julgamentos, mostrando o quanto conseguiu trabalhar os preconceitos que havia adquirido.

*Toni Reis é pós-doutor em Educação, presidente da Aliança Nacional LGBTI+, pai de Alyson, Jéssica e Filipe e marido do David

Se você perdeu o começo dessa história, veja a Parte 1 e a Parte 2 clicando no negrito.