Elisa Maia canta o que precisa ser dito agora: artista costura caos, prazer e reinvenção na Amazônia urbana
O que Elisa Maia canta não é fácil de nomear. É o indizível do afeto, da dor e da alegria, costurado por vocais sensíveis e batidas que reverberam o agora. Aos 44 anos, a artista manauara firma uma trajetória em que caos, prazer e reinvenção não se excluem — e faz disso sua assinatura estética e política.
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Cantora, compositora, produtora e ativadora cultural, Elisa constrói há mais de duas décadas uma obra que desafia rótulos e recusa expectativas óbvias. Sua sonoridade transita entre o rock, R&B, reggae e beats eletrônicos — mas o que mais pulsa é a fricção entre experiência íntima e tempo coletivo. “Hoje, eu sou uma mulher que procura a calma pra apreciar a vida — mesmo que, na maior parte do tempo, eu dance no caos. Precisa ter um pouco de felicidade no meio. Não só quando tudo acabar”, diz, com honestidade.
Neste momento, Elisa finaliza a criação de um novo álbum e documentário, ambos selecionados pelo Edital Natura Musical. O trabalho representa um mergulho mais profundo em tudo que tem marcado sua vida e sua arte: a reconstrução de si, o não-pertencimento, os atravessamentos amazônicos, o desejo como linguagem e o fim do mundo como cenário emocional dos tempos que vivemos.
Elisa atua há mais de uma década como produtora cultural no Coletivo Difusão.
Elisa cresceu entre a igreja evangélica e instrumentos musicais, filha de pais que cantavam na congregação. Começou a estudar música aos 8 anos, no Centro de Artes da Universidade do Amazonas, e por dez anos se dedicou ao piano, flauta, violão e canto. Foi só aos 21 que iniciou a trajetória profissional — como vocalista da banda de reggae Johnny Jack Mesclado, com quem gravou dois álbuns e circulou por diversos estados do país.
O primeiro voo solo veio em 2013, com o EP Ser da Cidade, gravado em Belém e lançado com uma turnê de 15 mil km por seis capitais amazônicas em apenas dez dias. Já ali, Elisa fincava posição: se afastava das imagens idealizadas da floresta e escolhia cantar o concreto quente da cidade, o fluxo das ruas, os desejos urbanos.
De lá pra cá, mergulhou em sonoridades diversas sem perder a identidade. Entre 2020 e 2023, lançou uma série de singles e videoclipes que marcam sua estreia como produtora musical: Sol de Setembro, Todo Poder Curativo, Beleza e Luas pra Tantas Faces. Também lançou a live session Dança Sozinha Sessions, um registro íntimo que encerrou um ciclo de reinvenção. Ainda nesse período, fez parcerias com nomes como a baterista Larissa Conforto (ÀIYÉ) e o produtor Buguinha Dub, que remixou Sol de Setembro.
A obra de Elisa é atravessada pela vida — e pela morte. A pandemia, que atingiu Manaus de forma brutal, foi também um tempo de criação silenciosa. Entre terapia, crises e cadernos de diário, ela encontrou fôlego para compor o que viria depois. “Minhas músicas novas são sobre o mundo angustiado dos que não dormem, mas também sobre o alento que nos falta. Sobre como o prazer pode ser uma saída pra dor”, conta.
A obra de Elisa é atravessada pela vida — e pela morte.
O novo repertório, em construção desde o isolamento, traz como referências afetivas Alanis Morissette, Kurt Cobain, Marisa Monte, Mahmundi e Liniker. Guitarras e batidas densas se misturam a vocais fortes e íntimos, numa estética que repagina os anos 90/2000 e encontra o espírito do tempo. São músicas que falam de fim — e da urgência de recomeçar.
Falar da obra de Elisa Maia sem falar de território seria impossível. Ao longo da carreira, ela tem sido uma das vozes mais críticas e instigantes de sua geração, cantando ancestralidade e, ao mesmo tempo, urbanidade. “Durante muito tempo, eu não me via nas narrativas de quem falava da Amazônia. Cresci pegando ônibus por duas horas entre a zona norte e o centro, ouvindo o que passava na MTV, absorvendo o som dos anos 90/2000 e tentando entender meu lugar no mundo. Minha arte nasceu desse não-pertencimento”, explica.

Fora dos palcos, Elisa atua há mais de uma década como produtora cultural no Coletivo Difusão. Por lá, realiza os festivais Até o Tucupi e Somas, voltados à juventude negra, periférica e dissidente da região Norte. Em paralelo, assina a direção artística de obras de novos artistas amazônidas — como o EP da dupla de rap Lary Go & Strela (2021) e o álbum Anos Luz, de Karen Francis (2023). Ela também cursa Filosofia na UFAM, escreve compulsivamente, lê sempre que pode e se alimenta do estar em roda. “A conversa me salva”, diz. Sua arte, como ela mesma define, é feita de urgência, mas também de cuidado.
Com novo disco e documentário a caminho, Elisa Maia se prepara para um ciclo de visibilidade ainda maior. O trabalho — com direção artística de Estêvão Queiroga — propõe uma reflexão radical sobre limites, recomeços e libertação. É sobre corpos que não se encaixam. Sobre mulheres que não correspondem às expectativas. Sobre criar apesar do colapso. E, como sempre, sobre dizer o que precisa ser dito.