Documentário sobre povos indígenas aponta a falta de identidade do movimento LGBT brasileiro
O Brasil não foi descoberto, foi invadido, massacrado e roubado pelos colonizadores portugueses. Esta é a primeira verdade a ser dita contra a doutrina que nos é repassada. A segunda é que, ao longo do tempo, a catequização dessas pessoas foi introduzindo algo novo na dinâmica desta terra: a homofobia. Este é um dos pontos importantes destacados no documentário “Terra Sem Pecado”, do jornalista Marcelo Costa.
“Em nenhuma das 274 línguas faladas nas 305 etnias indígenas que ainda restam após esses 520 anos de invasão, não existe tradução para a palavra preconceito”, conta à Ezatamag, fazendo ainda outra reflexão: como um movimento LGBT importado e baseado nas ideias estado-unidenses pode dar conta da luta brasileira? Como Stonewall pode ser transportada para a aldeia?
Há um processo de invisibilização e apagamento cultural que continua em curso. Precisamos contar a História do Brasil a partir do ponto de vista daqueles que já estavam aqui antes da chegada dos europeus.
Maranhense de 36 anos da cidade de Carolina morando em Brasília há 18 anos, Marcelo acredita que isso não é possível. “O Brasil precisa conhecer mais sobre a diversidade e pluralidade do seu povo, sem ter que se basear em modelos importados, afinal, temos as nossas próprias referências de luta e resistência.” Uma reflexão extremamente importante para uma sociedade que precisa de vez deixar estereótipos sobre os povos indígenas. Sim, no plural, porque eles são diversos.
Um caminho apontado surge em um fato histórico destacado pelo diretor: o primeiro caso de homofobia que ocorreu no Brasil foi contra um indígena da etnia Tupinambá, no litoral do Maranhão, em meados do ano de 1614. Uma comitiva de padres franceses da Ordem do Capuchinhos, ao identificar o comportamento sexual livre entre os Tupinambás, mandou prender os “tibiras”, palavra que significa “homens homossexuais” em Tupi.
“Amarraram um tibira à boca de um canhão e apontaram para o mar, na presença de todos da comunidade. Ele teve seu corpo partido ao meio.” Com uma violência mais velada e menos física, indígenas, os donos do Brasil, ainda sofrem preconceito – em dobro quando são LGBT, uma sigla que, explica Marcelo, não dá conta de definir a sexualidade desses povos e reforça a necessidade de um movimento pela diversidade sexual mais brasileiro, genuíno, sem deixar para trás os ancestrais de boa parte da população que somos hoje.
A ideia de fazer um doc sobre indígenas veio da sua ancestralidade?
Sim. À medida em que eu fui caminhando no sentido de afirmar minha identidade enquanto indígena Krahô, também fui identificando alguns aspectos reproduzidos pelas comunidades indígenas, mas que não fazem parte de suas culturas tradicionais, a exemplo do preconceito. Então a partir daí vi essa brecha para construir a narrativa do documentário Terra Sem Pecado, que aborda a vivência de indígenas LGBT dentro e fora das aldeias. Quando esses parentes estão em suas aldeias, sofrem preconceito por serem LGBT, e quando saem de suas bases para os centros urbanos, fugindo dos ataques homofóbicos ou para trabalhar e estudar, acabam sofrendo duplo preconceito, primeiro por serem indígenas e segundo por serem LGBT.
Você acredita ser importante que tenhamos memória, que não nos esqueçamos de quem somos realmente?
Quem não tem memória não sabe de onde veio, e pior ainda, não sabe para onde está indo. Ter consciência da memória ancestral é fundamental para desconstruirmos todas essas narrativas que embasam esses preconceitos, como a LGBTfobia, o machismo e o racismo, que foram introduzidos em nossa sociedade pelos colonizadores.
O povo brasileiro é fruto de um estupro coletivo. A expressão “minha vó foi pega no laço” expressa bem essa verdade.
Como foi rodar o Terra Sem Pecado? Qual foi seu objetivo?
Fazer o documentário foi um grande desafio, pois essa temática é nova dentro do movimento indígena. Falar sobre os indígenas LGBT ainda é tabu dentro de algumas etnias, que por hoje desconhecerem sua própria cultura, em detrimento do apagamento causado pelo processo de colonização, acabam tendo uma visão destorcida acerca do tema. Fato é que, a partir de dados históricos, o primeiro caso de homofobia que ocorreu no Brasil foi contra um indígena da etnia Tupinambá, no litoral do Maranhão em meados do ano de 1614. Uma comitiva de padres franceses da Ordem do Capuchinhos, ao identificar o comportamento sexual livre entre os Tupinambás, mandou prender os “TIBIRAS”, que significa “homens homossexuais” em Tupi. Amarraram um TIBIRA à boca de um canhão e apontaram para o mar, na presença de todos da comunidade. Ele teve seu corpo partido ao meio. Estava instituída pela igreja a LGBTfobia no Brasil, também o princípio da heteronormatividade entre os indígenas. O objetivo do documentário é fazer essa provocação, principalmente entre os indígenas, que atualmente reproduzem essa intolerância em relação às diferentes formas de expressão da sexualidade, uma vez que esse comportamento não pertence às culturas tradicionais indígenas. Inclusive, em nenhuma das 274 línguas faladas nas 305 etnias indígenas que ainda restam após esses 520 de invasão, não existe tradução para a palavra preconceito.
Você pretende levá-lo a festivais?
O doc já foi exibido em alguns locais e está disponível em algumas plataformas, como YouTube, Facebook e Instagram. Ainda não participamos de festivais, apesar de termos inscrito. A resistência acerca das pautas indígenas é enorme, haja vista a maneira como fomos ensinados a lidar com as coisas indígenas. Há um processo que invisibilização e apagamento cultural que continua em curso. Precisamos contar a História do Brasil a partir do ponto de vista daqueles que já estavam aqui antes da chegada dos europeus.
A pesquisa que embasou o Terra Sem Pecado feita por você te mostrou algo que você ainda não sabia sobre o índio? O que?
Sim. Mostrou que os indígenas têm outros modos de vida que precisamos conhecer. Sabemos muito pouco sobre os Povos Indígenas, sobre como essas populações lidam com questões como a sexualidade, por exemplo, que dependendo da organização social de um povo para outro, são livres em sua plenitude, porque nas aldeias não se sexualiza o corpo do outro. Ninguém é categorizado para caber dentro de uma caixinha, ou condenado por suas predileções sexuais. Todos são incorporados dentro da comunidade e desempenham seus papéis em prol do bem comum.
Como os indígenas encaram a sexualidade? Há o pecado?
Isso depende de um povo para outro, pois em algumas comunidades a sexualidade é livre, em outras, onde há a presença de igrejas, existe uma grande interferência sobre a sexualidade. O processo de apagamento continua, e a igreja permanece como braço forte de um projeto de poder. Nesse sentido, a noção de pecado foi impetrada pela igreja, que permanece como braço forte de um projeto de poder que visa a colonização não só dos territórios, mas também dos corpos, das sexualidades, das mentes dos indígenas. É um processo de apagamento, silenciamento e invisibilização que continua em curso.
Como ficam os LGBT nessa visão?
As siglas LGBT, a bem da verdade, não contemplam a realidade dos indígenas, pois não há parâmetro para comparar essas vivências. O movimento LGBT, que se fortaleceu a partir da Revolta de Stonewall, em 1969, tem seu valor por todas as lutas e conquistas para as pessoas LGBT, mas não há relação com os modos de vida dos indígenas. O Brasil precisa conhecer mais sobre a diversidade e pluralidade do seu povo, sem ter que se basear em modelos importados, afinal temos as nossas próprias referências de luta e resistência.
Ninguém é categorizado para caber dentro de uma caixinha, ou condenado por suas predileções sexuais. Todos são incorporados dentro da comunidade e desempenham seus papéis em prol do bem comum.
O Brasil esqueceu dos povos indígenas?
O Brasil foi ensinado a ver os indígenas como pessoas incapazes, que precisam ser tutelados pelo Estado para fazer qualquer coisa. Ainda impera essa visão deturpada sobre o “índio” em nosso país, sendo esse termo a primeira manifestação de racismo contra essas Nações Originárias. Somos ensinados a olhar para os indígenas como povos atrasados, que não querem evoluir, o que é uma falácia. O que existe mesmo é a total falta de respeito quanto aos modos de vida diferentes dos indígenas, que têm visões e cosmovisões diferentes daquelas que a igreja, por meio do Estado, sempre impôs.
Como manter viva uma cultura que nos moldou como brasileiros?
Primeiramente precisamos conhecer todas essas culturas que nos moldaram enquanto povo brasileiro, diverso e multicultural. Entender que o processo de miscigenação ocorreu de várias formas, mas o estupro coletivo talvez expresse com mais precisão todo esse contexto, levando em consideração a metodologia aplicada pelos invasores, que mataram, escravizaram e estupraram nossos ancestrais. O povo brasileiro é fruto de um estupro coletivo. A expressão “minha vó foi pega no laço” expressa bem essa verdade.
Instagram @terrasempecado