Dois pais homoafetivos e três adoções necessárias (Parte V)
Por Toni, David, Alyson, Jéssica e Filipe Harrad Reis*
No início, o contrato cresceu rapidamente, mas depois estabilizou até que muita coisa já passou a ser vencida e houve poucos acréscimos de um mês para outro. Depois de seis ou sete meses, começamos apenas a ver mensalmente o que estava “pegando” em vez de rever o contrato inteiro.
A metodologia do contrato deu certo para nós. Alyson começou a responder e desobedecer muito menos e não foi um processo de imposição, mas sim de diálogo e estabelecimento de limites claros.
O contrato serviu e ainda serve de norte em situações de desentendimento. Atualmente, o que ainda cria situações de “estresse” dentro de casa é o não cumprimento do contrato ou da palavra e a enrolação, mas estamos sempre trabalhando para melhorar isso. Agora, dificilmente temos que recorrer ao contrato ou às multas.
Foi preciso ter muita paciência e autocontrole para não “perder as estribeiras” com Alyson nesse primeiro período. Numa sexta-feira à noite, já depois de vários meses de convivência, chegamos a uma crise, provocada por um gesto bobo, mas que foi a gota d’água no processo do teste dos limites. Alyson queria ficar mais tarde do que combinado na aula de balé (até meia-noite) e não deixamos.
Em vez de aceitar, ele ficou insistindo, fazia caras e bocas e então começou a soluçar a fim de que tivéssemos dó dele e deixássemos fazer o que queria. Seguiu-se uma discussão acalorada e prolongada que quase resultou na decisão de devolver o Alyson em função de sua persistência em desobedecer e o efeito que os desentendimentos estavam tendo na relação entre nós, Toni e David.
A metodologia do contrato deu certo para nós. Alyson começou a responder e desobedecer muito menos e não foi um processo de imposição, mas sim de diálogo e estabelecimento de limites claros.
No final, fizemos as pazes e Alyson ficou conosco. O que não se pode fazer é ceder ao dó que se tem pelo que a criança já passou, deixando de corrigi-la com firmeza.
Os limites são essenciais para a convivência harmoniosa, não só agora como no futuro. Caso contrário, a criança poderá tomar conta. Por outro lado, não se pode esquecer tudo o que a criança passou antes de ser adotada, sobretudo no caso de uma criança mais velha. Às vezes é preciso ter a compreensão disso e do fato de que ninguém muda de hábitos e comportamentos da noite para o dia. A adaptação é um processo gradativo, para todos os envolvidos.
Também não dá para pensar que tudo vai ser um “mar de rosas” depois do período de convivência e da adoção definitiva. As dificuldades na relação podem continuar a surgir periodicamente, assim como em qualquer família.
Quando Alyson veio morar conosco, o quarto dele estava vazio. Não compramos nada com antecedência porque queríamos que ele participasse do processo da escolha das decorações e dos móveis, para que sentisse que fossem dele. Enquanto o quarto dele não ficava pronto, ele usava o quarto de hóspedes.
Com o mesmo intuito de fazer com que Alyson se sentisse pertencente, criamos uma espécie de “família estendida”, com madrinhas e padrinhos e vovós que nos visitam de vez em quando e com os quais Alyson tem contato periódico. Uma das madrinhas tem uma casa de praia e ainda durante as férias de fim de ano tivemos a oportunidade de passar alguns dias lá.
Quando o quarto do Alyson ficou pronto, fizemos uma festa de inauguração com a família estendida e amigos numa espécie de reafirmação de boas-vindas para Alyson em nosso meio.
Percebemos que muitas vezes desperta curiosidade nas pessoas no sentido de querer saber quem desempenha quais papéis num relacionamento entre duas pessoas do mesmo sexo. David, que foi casado por 10 anos com uma mulher, afirma que na convivência cotidiana não há diferença alguma. Procuramos dividir as tarefas conforme as capacidades e habilidades de cada um. Temos um escritório em casa e é lá que trabalhamos.
Para ajudar nas tarefas domésticas, tivemos a felicidade de contar com o apoio da Romy durante 15 anos, até se aposentar em 2016. Ela trabalhava de segunda à sexta, cuidava da limpeza, das roupas a lavar e passar e fazia o almoço, sempre delicioso por sinal! Nos fins de semana, feriados e dias que a Romy não vinha trabalhar, era o David que tendia a cuidar mais desses aspectos.
Hoje, cada um dos três filhos tem suas responsabilidades no cuidar com a organização da casa e dos quartos deles, mas é um processo lento e a tendência deles ainda é de deixar as coisas desarrumadas.
Em termos da educação e dos cuidados com Alyson, Toni é mais uma figura de autoridade, embora brinque bastante, enquanto David tende a se preocupar com os aspectos mais práticos, como acordá-lo de manhã para ir para escolar, ir fazer compras juntos…
Também não dá para pensar que tudo vai ser um “mar de rosas” depois do período de convivência e da adoção definitiva. As dificuldades na relação podem continuar a surgir periodicamente, assim como em qualquer família.
No entanto, Toni viaja bastante e nesses momentos David necessariamente acaba assumindo mais a figura de autoridade também. Ambos acompanham os deveres de casa, saem juntos nos fins de semana e procuram proporcionar uma vida em família.
Na opinião de Alyson, “Toni é exigente, carinhoso, afetuoso, fofo e sempre de bom humor (feliz). David é maravilhosamente bonzinho, é do tipo de pessoa que não gosta de estresse em exatos momentos. Adora fazer as coisas para a gente com muito carinho e amor. Tudo que ele faz é maravilhoso, o jeito de falar dele é fofo, bem britânico!”.
*Toni Reis é pós-doutor em Educação, presidente da Aliança Nacional LGBTI+, pai de Alyson, Jéssica e Filipe e marido do David
Se você perdeu o começo dessa história: