Di Vina Kaskaria é inquieta, plural e chegou para quebrar padrões de corpos dentro da arte drag

É desde sua infância que Diego Bernardino, 25 anos, mora é apaixonado pela montação, pela maquiagem. E foi há seis anos, em uma festa em Brasília, que ele deixou essa paixão ganhar mais vida e fez nascer Di Vina Kaskaria – quebrando padrões de corpos dentro da arte drag e unindo música, maquiagem, redes sociais, artes plásticas e militância.

Geminiano assumidamente hiperativo, Diego mora em São Paulo e reconhece que foi benéfica a explosão de fama da arte drag advinda de Ru Paul’s Drag Race e da ascensão de Pablo Vittar ao mainstream, mas questiona até que ponto essa explosão não trouxe também o reforço de estereótipos, a padronização de um jeito de ser drag.

“Entretanto, essa visibilidade também estabeleceu um certo padrão estético que, a meu ver, pode ser muito prejudicial para os outros artistas que não seguem exatamente essas mesmas referências. Já perdi as contas de quantas vezes fui desvalidade por fazer drag da maneira que faço”, conta à Ezatamag.

“Enquanto arte marginal, drag nasce para questionar padrões, causar desconfortos e suscitar discussões”. É o que ele tem feito, mesmo em tempos de quarentena, como conta abaixo:

Como você soube que a Di Vina estava dentro de você e precisava se mostrar para o mundo? Você enfrentou muito preconceito por isso?

A Di Vina surgiu de um desejo de infância de me jogar no mundo das montações, makes e figurinos. Foi através da arte drag que eu me entendi enquanto artista e pude explorar diversos desejos de expressão artística que eu tinha reprimido durante toda a vida. A oportunidade da primeira montação surgiu graças à Festa Factory em Brasília, no ano de 2014, eu já comecei a me montar trabalhando lá, o que é uma realidade bem diferente da maioria des artistes que o fazem, mas a Factory foi um grande laboratório onde eu tive a liberdade de construir minha performance drag a partir do meu próprio ponto de vista. Fazer drag me proporcionou primeiramente encarar meus próprios preconceitos, me entender enquanto bicha, compreender que os espaços e lugares que eu posso ocupar hoje foram conquistados com sangue e suor das gerações passadas e, acima de tudo, que esses espaços não são garantidos, pois todos direitos que conquistamos permanecem ameaçados, e muitas de nós (da comunidade LGBTQIA+) ainda têm suas existências ameaçadas e precarizadas. Acredito que mesmo diante das agressões verbais, psicológicas e físicas que sofri – sejam por parte da família ou do ‘mundo exterior’ – eu enquanto pessoa venho de um lugar extremamente privilegiado, que foi fundamental para que eu tivesse acesso aos lugares que tenho, ter entrado na universidade, estudado sobre o movimento LGBTQIA+ e sobre a cultura drag. Eu fui também muito privilegiado de ter em meu caminho pessoas que me incentivam e me apoiam a seguir produzindo minha arte, mesmo diante de todas as dificuldades que o mundo impõe.

 

As pessoas ainda te olham diferente porque você tem pelos? Uma drag peluda deve chamar atenção.

Sobre ser uma drag peluda, grande parte das críticas que recebo se deve ao fato de que as pessoas ainda enxergam a arte drag como uma personificação/exagero do feminino. Mas acredito que essa arte tem sua potência para muito além de reproduzir estereótipos de feminilidade e de beleza eurocentrada.

Você acha que essa quebra de padrões é importante? Por que?

Expandir minha drag para além desse lugar comum é também uma forma de criticar e questionar a construção desses padrões de performatividade de gênero, beleza, e quais poderes políticos-sociais eles representam. Ah, caso eu não tenho deixado claro antes, drag é um ato político. O meu fazer drag parte sempre de um lugar de deslocamento, um lugar de não-pertencimento, do constante sentimento de ser um estranho, alienígena, em um mundo que não compreende minhas especificidades enquanto indivíduo e pune aqueles que, como eu, variam da norma cisheteronormativa imposta. E através da maquiagem, figurino, caracterização e performance eu posso expressar esse incômodo que sinto de uma maneira visual e aberta a todes que se permitem dialogar com minha arte. Com a chegada de RuPaul’s Drag Race no mainstream e a ascensão de Pabllo Vittar e Glória Groove na música brasileira, a arte drag alcançou uma visibilidade nunca antes vista. Entretanto, essa visibilidade também estabeleceu um certo padrão estético que, a meu ver, pode ser muito prejudicial para os outros artistas que não seguem exatamente essas mesmas referências. Já perdi as contas de quantas vezes fui desvalidade por fazer drag da maneira que faço, mas no fim do dia creio que devemos focar mais nas críticas construtivas do que naquelas que são apenas maldosas. Enquanto arte marginal, drag nasce para questionar padrões, causar desconfortos e suscitar discussões. Em 2020, um homem através de inúmeros artifícios estéticos conseguir ter uma passabilidade de performatividade feminina talvez não seja mais tão estranho assim, então por que não questionar outras coisas? Talvez a nossa noção de beleza, feminilidade/masculinidade, questionar a própria noção do humano. São alguns dos atravessamentos que eu busco traduzir na arte.

Expandir minha drag para além desse lugar comum é também uma forma de criticar e questionar

Como o mundo da maquiagem entrou na sua vida? Quais suas referências para fazer uma make?

Quando eu cedi ao desejo de fazer drag era completamente leigo em todos os processos que levavam à construção visual dessa arte, foi na prática, me arriscando, errando e treinando muito que eu me apaixonei por maquiagem, assumindo inclusive a falta de técnica como parte do meu processo criativo. Hoje, mais de seis anos depois de ter colocado um cílio postiço pela primeira vez, posso dizer com segurança que sou aficionado por maquiagem, estudei e me capacitei nesse sentido, sempre tentando manter a criatividade solta para pensar em formas inovadoras de aplicação. Estou sempre procurando novas referências e agregando outras de fora do mundo da maquiagem no meu processo criativo, ultimamente tenho sido muito estimulado pelas composições da @makeupbrutalism que une técnicas de maquiagem experimentais a distorções de imagem para questionar a própria relação dessa arte com o paradigma da imagem na era das redes sociais.

 

Toda multitalentosa, a senhora também é DJ. Você sempre gostou de música? Como foi o caminho para se tornar DJ?

Minha relação com a música vem desde a infância, na adolescência eu toquei violão, percussão e cantei na igreja. O amor pela música eletrônica veio quando comecei a frequentar a noite aos 18 anos, aí minha curiosidade histórica me levou a pesquisar sobre diferentes gêneros, eras, e a coletar coisas que me estimulavam. Com os espaços para performar reduzidos, ser drag-dj era bem mais atrativo e me deu muitas outras oportunidades, foi a primeira coisa do meu trabalho que eu consegui “exportar” saindo de Brasília para tocar em São Paulo, Rio de Janeiro e Campo Grande. Ainda tenho vontade de em algum momento unir mais a paixão ao drag com a música (principalmente eletrônica, no meu caso). Eu diria que sou bem ambicioso como artista, tenho pretensões de criar experiências mais abrangentes para o público, através da drag, música, maquiagem, moda e todas minhas outras paixões.

Você se sente realizada unindo a arte drag, a make e a música? São os amores da sua vida?

Eu diria que o amor da minha vida é o experimentalismo, testar, conhecer, experimentar, errar, acertar, aprender coisas novas o tempo todo, e a minha drag é sempre um reflexo do que eu estou pensando e sentindo no momento, então eu vario de referências, expressões, de uma forma bem radical.

Como você tem tentado manter a cabeça fresca na quarentena?

Esse período de distanciamento social tem sido muito intenso, apesar da sensação constante de ansiedade e medo que me atravessa, tenho conseguido produzir bastante coisas, tenho estudado muito, me maquiado muito, costurado muito, pintado muito, tentando utilizar essas expressões como uma forma de me manter concentrado e com a mente saudável, o que não acontece todo dia, mas a gente continua tentando. Fui convidada a fazer parte de um reality show virtual com drags do Brasil afora, e no processo de cumprir os desafios, me vi produzindo coisas que jamais imaginava ser capaz de fazer! Isso sem dúvida expandiu meus horizontes para pensar em estratégias e maneiras de produzir um trabalho voltado para linguagem das redes sociais, e o resultado disso tem sido muito bom, passei a alcançar mais pessoas com as minhas expressões.

Agora me conta o seu maior desejo!

Meu maior desejo é seguir. Seguir aprendendo, produzindo, estudando, estimular outras pessoas a fazer o mesmo.

Instagram @divinakaskaria