Saiba como aplicar na prática a decisão do STF que criminalizou a homofobia
O Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu em 14 de junho deste ano que o preconceito contra pessoas LGBT deve ser equiparado ao racismo – solidificando a criminalização da homofobia. Sonho ativista desde épocas do tão discutido e pouco avançado Projeto de Lei da Câmara (PLC) 122/06, a punição para preconceituosos passou a ser realidade desde a decisão.
Mesmo com o Acórdão do julgamento ainda não publicado, já se pode utilizar este aparato judicial, como explica o advogado Paulo Roberto Iotti Vecchiatti, um dos responsáveis pela ação que culminou na criminalização e peça-chave na sustentação oral que convenceu os ministros do Supremo.
Ezatamag conversou com Paulo para esclarecer na prática como e o que pode ser juridicamente feito em casos de discriminação:
Existe uma previsão para a publicação do Acórdão? Apenas após isso a decisão está valendo ou já pode ser aplicada?
Não há como saber quando o inteiro teor do acórdão, com a íntegra dos votos, será publicado. STF já demorou mais de um ano, por vezes. Mas até por isso, o Tribunal já decidiu várias vezes que a decisão já vale desde a publicação do resultado do julgamento, que ocorreu no dia 14 de junho deste ano. Então, não há prejuízo, e o voto do ministro Celso de Mello, seguido pela maioria do Tribunal, está disponível em sites jurídicos desde fevereiro, então prejuízo nenhum há.
Qual a importância de termos esse aparato jurídico a nosso favor?
A importância é enorme. Antes, vítimas de discriminação e discursos de ódio LGBTIfóbicos que não tinham proteção penal, pois são condutas não punidas no Código Penal, só na Lei Antirracismo, agora têm. Esse é um aspecto prático importantíssimo da decisão. Mas tem também o efeito simbólico, de qualquer lei ou decisão judicial: agora a sociedade sabe que a homotransfobia é crime e, no Brasil pelo menos, políticas públicas em defesa de minorias e grupos vulneráveis muitas vezes só surgem após a opressão respectiva ser considerada crime. Foi o caso com a violência doméstica, com a Lei Maria da Penha, e o feminicídio, com a criminalização respectiva. E, da mesma forma que a Lei Antirracismo ajudou a calar os racistas em rede nacional e em público, pois exceções à parte, não vemos pessoas defendendo terem “liberdade de expressão” para atacar pessoas negras, como sempre vimos muitas dizendo relativamente a pessoas LGBTI, esse é um efeito prático que podemos esperar também. Que fique claro, racismo contra negros continuou existindo e nada tem de “cordial”, como absurdamente se diz nesse país, mas o racista sabe que não pode ser pego atacando pessoas negras. Agora, sabe que o mesmo se aplica relativamente a pessoas LGBTI.
A denúncia é feita de alguma maneira especial ou segue o caminho das outras? Há algum privilégio neste processo com relação a outros casos?
Denuncia-se fazendo Boletim de Ocorrência (BO) em delegacias ou comunicando o Ministério Público Estadual. Como homotransfobia foi considerada racismo, aplica-se a mesma lógica: se é o que se chama de “injúria racial”, uma ofensa a um indivíduo por sua raça (e a orientação sexual e identidade de gênero das pessoas LGBTI foram consideradas “raças”, pois se racismo é um conceito político-social de opressão desumanizante que inferioriza grupos sociais estigmatizados por grupo dominante, como bem reconhecido pelo STF, raça também é um conceito político-social), precisa-se fazer BO e ir de novo à delegacia, para fazer a “representação” (uma confirmação do interesse em processar criminalmente, por assim dizer). Se é o “racismo” uma ofensa à coletividade racial (LGBTI, no caso), aí o Ministério Público pode processar diretamente (e ele assumirá a ação penal após a representação, na injúria racial).
Qual a condenação para quem praticar esse tipo de crime? E em caso de reincidência?
Em geral, pena de 1 a 3 anos de reclusão (prisão), com alguns casos de penas de 2 a 5 anos. Mas se a condenação é de até 4 anos, o Judiciário substituirá por “penas alternativas”, como prestação de serviços comunitários. Então, é uma criminalização que não gerará encarceramento em massa e quase não gerará prisão (o genocídio da população negra e pobre se dá pelos crimes contra o patrimônio e de drogas, aplicados seletivamente contra tais grupos sociais, donde é errado supor que o mesmo ocorrerá com uma lei antidiscriminatória).
A criminalização pode ser derrubada por algum outro tipo de decisão futura que a reverta?
O Congresso não pode anular ou suspender a decisão do Supremo. A Constituição permite isso para atos do Executivo, não do Judiciário, por isso essas bravatas nunca vão pra frente (ameaçam isso desde a decisão da união homoafetiva, de 2011, e nunca o fizeram). O Congresso pode (e deve) aprovar lei que criminalize a LGBTIfobia. Não é obrigado a criminalizar de forma idêntica à decisão do Supremo, MAS é obrigado a criminalizar de forma eficiente, punindo discriminações e discursos de ódio, que não são punidos pelo Código Penal, mas são punidos pela Lei Antirracismo relativamente a outros grupos (negros, indícios, estrangeiros e religiosos). Tem o dever de garantir igual proteção penal a pessoas LGBTI relativamente a outros grupos vulneráveis, sem hierarquização de opressões.
Denuncia-se fazendo Boletim de Ocorrência em delegacias ou comunicando o Ministério Público Estadual.
Essa decisão influencia nos discursos que condenam LGBTs em algumas igrejas?
Dizer que algo é “pecado” não é e jamais poderá ser crime. Aqui temos liberdade religiosa. O que é crime é incitar à violência, à discriminação e à segregação contra pessoas LGBTI – por exemplo, pregar que pessoas LGBTI em geral seriam “perigosas”, “pedófilas”, que gostariam de “destruir ou prejudicar a sociedade” etc. São preconceitos históricos contra pessoas LGBTI que seus adeptos defendem ter “liberdade de expressão e religião” para proferir, mas não têm. Discursos de ódio não são protegidos pela liberdade de expressão, cf. STF, Corte Interamericana e Corte Europeia de Direitos Humanos. Igreja não é lugar sem lei, não se pode achar que a igreja seria local onde se poderiam praticar discriminações, discursos de ódio e ofensas diversas (o que, repito, não impede de considerarem o que quiserem como “pecado” nem as obriga a realizar casamentos religiosos homoafetivos – o casamento civil é um direito, o religioso é um dogma dependente da liberdade religiosa de cada instituição religiosa).
No que ela influencia no cotidiano das empresas que têm empregados assumidamente LGBT?
A decisão já fez algumas empresas se preocuparem em não discriminar funcionários (as) LGBTI. Aumentou a conscientização sobre a necessidade de enfrentamento da homotransfobia.
Por que é importante que o Congresso também caminhe com este tema?
Porque uma lei dá mais segurança jurídica que uma decisão judicial. Mesmo leis podem ser alteradas, mas é mais difícil que ocorra e com a lei acaba a discussão jurídica sobre o tema. Com um Congresso tão reacionário, não precisamos ter pressa, já que a decisão do STF tem força de lei (efeito vinculante e eficácia erga omnes, no juridiquês: é de obrigatório cumprimento no país inteiro, traduzindo). Mas é importante termos leis sobre casamento civil igualitário, identidade de gênero de pessoas trans, criminalização da homotransfobia etc, sem dúvida.