Kaká di Polly morre em SP deixando um legado de militância e arte e uma personalidade doce pouco exibida publicamente
Com o privilégio de dispensar apresentações, Kaká di Polly se despediu dos palcos da vida na tarde da última segunda-feira, 23 de janeiro, em São Paulo (SP). Sua morte não teve a causa divulgada e foi confirmada nas redes sociais por sua assessoria, trazendo um lamento geral no meio cultural – e não apenas LGBT+ porque a Rainha Louca chegava a diversos círculos sociais.
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Era com essa imagem de grito, de brava, de rainha, que Kaká circulava publicamente. Foi, é e sempre será a personificação paulistana da Rainha Louca da Lôca. E ninguém cometerá a loucura de deixar essa imagem se apagar.
Tive o privilégio de encontrá-la várias vezes e, há 10 anos, ser recebido na casa de Kaká, no Ipiranga, perto da Rua do Grito – a vida, que engraçada. Carlos Alberto Pollycarpo abriu sorridente e com muita receptividade o portão de uma casa antiga, tradicional, de propriedade da família, que gerou comentários afetuosos sobre a relação dele com a mãe.
Hoje em dia não tenho saúde para isso, falava irônica, rindo, aceitando-se.
Carlos me levou para conhecer a casa da Kaká di Polly. “Porque uma diva precisa de espaço”, lembro até hoje qual foi a explicação para que uma edícula inteira, e bem grande, fosse ocupada por uma explosão deliciosa e histórica de looks, perucas, arranjos de cabeça e todo tipo de montação de uma rainha drag.
Um cômodo inteiro dedicado a guardar com muito cuidado toda a personificação Kaká di Polly. Foi com orgulho de cada peça que Alberto me mostrou sua Kaká, me dando o privilégio de mergulhar na História LGBT+ brasileira de camarote, com comentários de especialistas e muito material extra.
Uma dessas histórias é talvez a mais famosa, aquela onde Kaká deita no asfalto da Avenida Paulista para a Parada de 1997 ser realizada – evento que de poucas pessoas corajosas expostas naquele ano se tornou o maior do tipo no mundo. “Me enrolei na bandeira do Brasil porque é um símbolo nacional e eles não poderiam me prender”, me explicou.
Também lembrou de certa vez, nos anos 90, ter parado um dark room inteiro em um famoso clube paulistano porque roubaram uma peruca dela. “Era importada, caríssima.” Kaká se fez Kaká e gritou, mandou acender a luz e parar todo o babado (imagina isso) até que a peruca importada caríssima aparecesse. “Claro que apareceu”, me respondeu com firmeza, quase brava.
Mas não é tudo engraçado ou brilho. Em uma mudança da edícula de Kaká para a mesa de jantar de Alberto, lembro que mudou também o tom, o universo de Kaká. Agora era Carlos que conversava comigo, servia um cafezinho e sentava na ponta da mesa – porque a força de se impor no mundo permanecia em Kaká e em Kaká di Polly.
Uma diva precisa de espaço!
O tom de voz mudou, ficou mais aberto, mesmo sendo mais baixo, mais calmo. Alberto deixou a Kaká lá na edícula para falar abertamente sobre tempos sombrios, como a epidemia de Aids nos anos 80, lamentando por ainda lembrar tantos nomes de amigos que se foram. Carlos vagueava o olhar ao falar disso, como se ainda procurasse uma explicação para tudo aquilo.
Também admitiu uma época mucho lôca onde se jogava na cocaína, ficava bem doida querendo um boy e fazia loucuras no auge da onda do pó. Falava como quem quisesse avisar os mais novos sobre os perigos dessas carreiras. “Hoje em dia não tenho saúde para isso”, falava irônica, rindo, aceitando-se.
Em 2018, votou no inominável ex-presidente do Brasil, e se arrependeu depois. Humana, Kaká cometeu muitos erros, ela mesma dizia, mas quem não? Era tida como agressiva, mas como um homem gay, afeminado, gordo, estrábico e drag queen era e infelizmente ainda é tratado na sociedade? Como ele pode reagir?
Kaká gritou, sim, muito para se defender de críticas e ataques, mas também gritou o suficiente para inflar o sonho de uma militância LGBT+ brasileira organizada, que em 1997 se encontrava em diversos núcleos de atuação e precisava de uma linha a seguir.
Obrigado, Kaká.