Diálogos sobre a epistemologia e a importância da cultura do funk brasileiro

Por Ágatha Pauer*

Compreender as interfaces do funk é ecoar antropologia nesse entendimento. Para além de Antropologia, o movimento preto. Sendo ele não somente fruto de uma marginalização e escravidão, mas também fruto de uma epistemologia onde os códigos e leituras advém de uma ancestralidade que tirada da mão do senhor de engenho, e colocada na mão do Estado, se encontrou aprisionada às periferias como um modo de varredura dos centros das cidades.

Desta maneira, as letras e os ritmos que contêm a sua melodia perpassam realidades periféricas e constroem possibilidades de existências. Mais do que cantar, o corpo tenciona uma expressão, linguagem e estética que traz à tona a sua realidade. O que por sua vez, provoca e desestabiliza regiões centrais e uma sociedade burguesa, branca e higienizadora. Que busca, desta forma, criminalizar os seus saberes e sua cultura.

Não divergindo épocas atrás de uma realidade em que a lei da vadiagem criminalizava e penalizava corporeidades pretas que ousassem expressar a sua cultura. Instaurando uma proibição a quem tocasse, cantasse e dançasse samba. Tendo esse negacionismo e racismo como foco principal, a partir de uma ideologia político-hierárquica, o embranquecimento cultural.

O que podemos observar com o surgimento de outro gênero musical – bossa nova – que se transmutou a partir do samba e outras vertentes escurecidas. Ou seja, todo esse processo retroalimentava uma estrutura a modo de intelectualizar o branco que produzia esse gênero musical, e criminalizar o preto como “vagabundo”. Sendo esse arco narrativo transcrito com a realidade do funk no cenário brasileiro.

As letras e os ritmos que contêm a sua melodia perpassam realidades periféricas e constroem possibilidades de existências.

Atualmente Mc Dricka (A Rainha dos Fluxos) teve uma indicação ao BET Awards 2021, na categoria de melhor novo artista internacional. Sendo a única cantora brasileira a representar o funk, “sobretudo feminino”, destacando a @tamiriiscoutinho em seu artigo (Me olha e me respeita: dos fluxos de SP para a Times Square NY). O que trago para a observação não só o fato da representação feminina, como também lbti+, por ser ela uma mulher preta favelada periférica lésbica.

Numa live da @midianinja, dentro do PapoNINJA com @brunoramosfunk, a mc afirma que o seu maior K.o “é mostrar que mulher também pode, que pode ser Rainha […] É mostrar que mulher preta favelada também sai da favela […]”. O que esbarra numa realidade extremamente genocida. Afinal de contas, a periferia sempre esteve fadada e aprisionada a viver condicionada à sua própria moradia eternamente. Tendo em sua estrutura a falta de saneamento básico, hospitalar, educação e entre outros serviços que compõem a esfera de dignidade de vida e humana.

Segundo Mbembe, esse fenômeno sociocultural tem nome, e ele se chama soberania vertical. Onde se aplica uma hierarquização/topo daqueles que estão versus aqueles que estão na base. Gerando, assim, técnicas e operações a fim de separar os territórios da colônia. O que acontece entre a periferia e o centro. Não deixando de consumir sua cultura, mas deixando quem a faz condicionado à margem.

Esse fenômeno sociocultural tem nome, e ele se chama soberania vertical. Onde se aplica uma hierarquização/topo daqueles que estão versus aqueles que estão na base.

Esse questionamento tem como valia a subversão dessa relação de poder e a quebra de uma estética branca e colonizatória. Que muito tem a criticar, tendo em seus dizeres e argumentações o apontamento a um gênero que incita violência elegendo-o a uma identidade de “falsa cultura”. Entretanto, não compreendendo, como diz a @anitta, que “para mudar as letras do funk, você tem que mudar antes a realidade de quem está naquela área”. Nessa perspectiva, o valor social a ser questionado não são as mensagens que as músicas tendem a passar, mas sim a estrutura que obriga esse corpo a se expressar ou de forma radical, ou em forma de resistência.

Contudo, esse movimento tem ganhado cada vez mais força e, com isso, ultrapassado fronteiras. A prova disso é ter o rosto da @mcdricka estampado nas Times Square NY. Não sendo apenas “da periferia para o Brasil”, mas “da periferia brasileira para o mundo”.

*Ágatha Pauer é criadora de conteúdo, atriz e travaturga, estudante do @iffcampuscabofrio e ex-bolsista do projeto de arte e cultura. Atualmente é coordenadora do movimento de mulheres da RL e filiada ao @gruposguais.